segunda-feira, maio 30, 2011

Morte e renascimento em vida.



A morte em si não dói. Do nada uma sombra negra e o ruído seco da tesoura de Laquesis, nos desperta para a estranha novidade, estou morto, fim. 
 
Seria ótimo se fosse, mas não é. Acordamos como se depois de um leve desmaio, mas quando percebemos não temos mais chão, estamos no ar e aí começam as piores dores, não acreditamos que nossa vida inteira desmoronou. Em menos de um segundo tudo que sonhávamos e vivíamos deixa de existir. Todo nosso trabalho em construir uma vida plena desaparece no ar, tantas palavras tantos amores, todo o sentimento termina, e todas as promessas se esvaem no ar.

 
Algo em nós ainda vive e este é quem se revolta, por tudo terminar em nada. Ainda há uma vida em nós continuamos nos movimentando, continuamos falando, mas a nossa alma penetra na escuridão, e quer que tudo acabe logo, mas não acaba, anos e anos teimam em passar diante dos nossos olhos, revivemos cada momento, com dor ou saudade.

 
O corpo ainda vive, porque foi nossa alma quem morreu, sucumbindo ao peso das ingratidões e desprezo daqueles a quem mais amou. Uma alma morta que se recusa a mover o corpo e este se move como um morto vivo sem nenhuma vontade. O espírito refugia-se nos mais recônditos cantos do inconsciente, onde escondido espera encolhido, que a morte total o liberte, para que possa seguir ao mundo dos mortos. 

 
A Alma, presa a sua própria matéria se recusa a movimentar-se, pois magoada e ferida em seu âmago acredita que jamais poderá viver novamente, pois as traições não foram físicas, a infidelidade foi contra o seu ser, e foi isto que a deixou tão ferida.

 
Por mais que quisesse meu espírito imortal, não conseguia morrer antes de chegar ao seu destino nesta vida, o que tornava toda a situação ainda mais singular. Um corpo sem alma querendo viver e uma alma sem corpo querendo partir. Mas como é comum a todos que morrem, a memória é a primeira coisa que começa a falhar e se não houver vivos que nos lembrem quem fomos, caímos no esquecimento tanto no mundo físico como no espiritual e sem lembranças nos perdemos antes mesmo do encontro com o barqueiro. E minha alma sem memória num corpo ainda vivo, rapidamente começa a se decompor.

 
Em meio ao esquecimento e lembranças que não mais queria ter, pouco sobrava para continuar vivo, algo ainda me prendia ao corpo, meu destino ainda não havia se cumprido e algumas vozes de pessoas que ainda mantinham boas lembranças de mim, começaram a chegar aos meus ouvidos e diziam que ainda precisavam que eu estivesse entre elas. 

 
Pouco a pouco estas vozes ganharam força e se identificavam, meus filhos e os filhos destes precisavam de mim e a memória voltava ao me lembrar deles. Outros que lembravam-se estavam no passado, tão distante que eu pouco sabia deles, uma destas pessoas me falava mais forte, nem tanto no volume da voz, mas no sentimento e no amor que ela ainda sentia, misturado a sua vida de hoje. Existia amor nesta pessoa, um amor verdadeiro, ainda que encoberto por outros sentimentos e outras memórias e ouvido estas memórias, minha alma se alegrava e voltava lentamente a ocupar o seu verdadeiro lugar em mim.

 
A vida começava a fluir novamente, em uma alma agora sem sonhos e com poucas perspectivas de realização, mas por mais fraco que fosse este chamado, ele fazia que a vida retornasse vagarosamente a criar novas ilusões e novos sonhos e uma nova vida para realizar estas novas utopias e voltar a acreditar na vida ainda que tudo estivesse contra.

 
Mas são os sonhos que alimentam a alma e a vontade de realizar-los que nos move, e assim desperto novamente para este mudo, os devaneios são fracos, mas um dia tornar-se-ão objetivos e estes, somente estes, nos movem.

quinta-feira, maio 26, 2011

Filho dos Deuses



Ser filho de um Deus é vibrar na intensidade da divindade, a principio pode parecer estranho esta ligação desde o nascimento com um deus ou deusa, que está presente em toda a nossa vida ainda que não a reconhecemos. 

Os Deuses são forças da natureza que regem o mundo e estão presentes em tudo o que nos cerca inclusive o que não vemos e muitos ainda estão presentes em nossos sentimentos e pensamentos. Estamos cercados de divindades, e portanto algumas delas regem a nossa maneira de ser.

Quando nossos antepassados deram corpo e nome para as energias que os cercavam, passaram a perceber que as pessoas também eram regidas por estas forças, inclusive na aparência física criada para a divindade. Os chamados filhos dos deuses tem atitudes e aparecia do deus que o rege, assim como aos signos astrológicos, mesmo porque os planetas e as constelações que são estudados na astrologia estão intimamente ligados as histórias e aventuras dos deuses.

Assim, fazendo uma redução dos atributos divinos, podemos dizer que os filhos de Apolo geralmente são bonitos e sedutores, com habilidade para a cura e podem se tornar ótimos oráculos. Os filhos de Afrodite a deusa da beleza e sensualidade, com toda certeza serão sensuais e admiradores da beleza. É claro que não é só isto, pois as divindades politeístas pagãs são monístas e, portanto têm em si todos os princípios e todas as dualidades, além da parte boa dos deuses seus filhos também carregam o que chamamos de lado negro, obscuro, que torna os filhos de Apolo sérios candidatos a desilusões amorosas, e a um distanciamento dos outros seres humanos e os filhos de Afrodite acabam sendo de certa forma fofoqueiros, afinal em cada encrenca mitológica sempre vamos ver um dedo de Afrodite, além do excesso de luxuria.

É claro que vão existir outras dezenas de aspectos de cada deus, que devem ser analisados por seus filhos e isto como já falei antes vai ser descoberto através de profundos estudos da mitologia. Diferentemente dos pais naturais que cada filho é uma loteria genética, os filhos dos deuses acabam sempre seguindo os mitos de seus pais divinos, seu destino está ligado ao da divindade, portanto quanto mais conhecem os mitos, melhor podem seguir sua vida e destino, fugindo das armadilhas em que estes deuses caíram.

Apolo por exemplo, ao brigar com Eros selou seu destino de ser infeliz no amor, sabendo disso, apesar de sua beleza, o filho de Apolo deve louvar Eros, para que este não atrapalhe a sua vida amorosa. Já os filhos de Afrodite devem controlar sua luxuria, para não caírem na rede de Hefesto e no conseqüente ridículo de verem sua vida sexual ser exposta publicamente.

Mas a coisa fica um pouco mais complicada porque não somos filhos de apenas uma divindade, mas sim de várias, o que muitas vezes explica a formação da nossa personalidade.

Por mais que eu soubesse que sou filho de Dionisio e de Afrodite, existiam vários aspectos na minha personalidade, que não faziam parte dos mitos destes deuses, mas que eu tentava encaixar neles, como minhas súbitas explosões e o meu refinamento estético. Via que as explosões podia ser o jorro dionisíaco de um Zagreus Ctônico e vulcânico e o refinamento estético por ser filho de Vênus, porém quando fui ao oráculo de Pã, logo na abertura, quem responde escandalosamente foi Posidon, o deus que estremece a terra e que causam os maremotos em plena calmaria, exatamente da maneira das minhas explosões. E analisando melhor percebo que o refinamento estético (por mais que seja difícil para um Dionisio admitir) é coisa de Apolo.

Não escolhemos nossos pais divinos, eles nascem conosco e vivem em nós, só o que devemos fazer é reconhece-los em nós, e como já disse: reconhece-los inteiros e não só as partes "bonitinhas".

Porém existem outras coisas que devemos levar em conta, além dos deuses que fazem parte da nossa alma ainda temos a opção da dedicação, esta sim é de nossa escolha, afinal existem muitos deuses e ninguém vai conseguir servir a todos.

Esta questão da dedicação é tão velha quanto a própria mitologia e nela vemos casos fragrantes desta troca como por exemplo Hipólito, filho de Teseu com Hipólita, que apesar de todas as suas características apolíneas, incluindo o dom da cura, dedica sua vida a Ártemis ou Paris também apolíneo e arqueiro dedica-se a Afrodite podo em risco sua vida, família e cidade.

Creio ser esta a grande vantagem do paganismo, não somos obrigados a aceitar um deus que nos é imposto, nem mesmo aquele que nasceu conosco, podemos sempre optar por deuses com que tenhamos mais afinidade. Mesmo que assumamos um deus contrario aos nossos deuses pessoais, o culto a este vai acabar nos levando aos deuses que moram em nós, não é preciso pressa para conhecer nossos pais divinos, pois a medida que trilhamos o caminho, eles vão aparecendo a medida que conhecemos melhor a nós mesmos.

Muito Feliz, Mesmo!!!!!!


Estou tão feliz com meu blog!!!!!!!

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Fora que recebo comentários em posts de 2005.

Muito feliz, mas muito feliz mesmo!!!!

Obrigado a todos

quarta-feira, maio 25, 2011

Nereides





As cinquenta filhas de Nereu, figura muito arcaica, chamado de Velho do mar, eram criaturas que encarnavam, cada uma, um aspecto ou um estado particular do elemento marinho. Elas moravam num grande palácio no fundo das águas, onde passavam o tempo tecendo e cantando, quando não vinham brincar na superfície com os delfins e as ondas. Sempre prometi a mim mesmo ir um dia, ao nascer do sol, à orla de uma ilha grega e lá enumerar o nome das Filhas do mar. Esses nomes, que encontramos dispersos nos textos antigos e cujo número não parou de ser aumentado pela imaginação dos poetas, nunca foram sistematicamente reunidos, e muito menos traduzidos, o que é bastante lamentável. Aqui estão eles, em ordem alfabética, pois essas criaturas graciosas e brincalhonas eram, parece - como o mar, aliás -, de grande suscetibilidade!

Aproximando-me, pois, da margem, exclamarei sem ênfase, mas com convicção:

O vós, minhas Nereides,
Acteea, a Ribeirinha
Agave, a Admirável
Amatea, a Selvagem
Anfínome, a Onipotente
Anfítoe, a Agitada
Apseudes, a Prudente,
Calianassa, a Soberana
Calinira, a Esplêndida
Calipso, a Secreta'
Ceto, a Gironda
Cimatolege, a Apaziguadora
Cimo, a Onda
Cimódoce, a Colinosa
Clímene, a Atenciosa
Cranto, a Realizada
Dero, a Paciente
Dexamene, a Côncava
Dinamene, a Poderosa
Dione, a Divina
Dóris, a Acerada
Doto, a Pródiga
Éione, a Auroreal
Erato, a Amável
Eucrate, a Harmoniosa
Eudora, a Abundante
Eulímene, a Acolhedora
Eumolpe, a Cantora
Eunice, a Vitoriosa
Eupompe, a Acompanhante
Evágora, a Congregadora
Evarne, a Carneirinha
Ferusa, a Portadora
Galatéia, a Leitosa
Galene, a Serena
Glauce, a Chamejante
Halimede, a Soberana
Hálio, a Marinha
Hiponoe, a Cavalina
Hipotoe, a Cavaleira
Íone, a Púrpura
Janira, a Sonhadora
Limnoréia, a Lisa
Lisianassa, a Libertadora
Mélite, a Graciosa
Menipe, a Domadora
Mera, a Vociferante
Nausítoe, a Impetuosa
Nemertes, a Fecunda
Orítea, a Montanhosa
Pánope, a Onividente
Pasítea, a Toda Divina
Plexaura, a Entrelaçadora
Polínoe, a Sábia
Pontomedusa, a Rainha do Largo
Pontoporéia, a Viajante
Prónoe, a Prudente
Proto, a Aventureira
Protomedéia, a Ancestral
Psâmate, a Rainha das Areias
Sao, a Cavernosa
Talia, a Florescente
Temisto, a justa
Tétis, a Imensa

E tendo dito esse último nome, eu dispersarei um a um os grãos de areia da margem na clepsidra de meus dedos como as pérolas de todos os esplendores para sempre submerso.
(do Livro: Grécia Um Olhar Amoroso de Jacques Lacarrière)

quinta-feira, maio 12, 2011

Dialogo dos Mortos X : CARONTE E HERMES


 

CARONTE
Ouvi qual é a vossa situação. O barco é pequeno, como vós vedes, está comido por bicho, recebe água por muitos pontos e se oscilar para um bordo e para o outro afundará de casco para o ar. Por outro lado, vocês chegam em tão grande número, ao mesmo tempo, cada um trans­portando grande carga. Ora, se vocês embarcarem com tudo isso, receio que depois vos arrependais, sobretudo os que não sabem nadar.


UM MORTO
Como haveremos de fazer então, para ter uma navegação feliz?


CARONTE
Eu explicar-vos-ei. É preciso que embarqueis nus, deixando todo esse supérfluo na margem porque, assim como estais, dificilmente o barco poderá receber-vos.
E tu, ó Hermes, trate, a partir de agora, de que nenhum deles que não venha em pelo seja recebido, depois de jogar fora, como eu já disse, a bagagem. De pé firme, junto à escada, passe-os em revista, receba-os, forçando-os a subirem nus.


HERMES
Tens razão e assim faremos. Quem é este que está em primeiro lugar?


MENIPO
Eu sou Menipo. Mas repare, ó Hermes, a saca e o cajado já foram lançados ao pântano. E o manto surrado sequer o trouxe, de propósito.

HERMES
Entre, Menipo, o melhor dos homens, e ocupe o lugar de honra ao lado do piloto, bem alto, para observares a todos. E esta beldade, quem é?

CARMÓLE0
Carmóleo, de Mégara, o querido cujo beijo custava dois talentos.

HERMES
    Ora vamos despir a beleza e os lábios mais os beijos e a espessa cabeleira e o rosado das faces e a pele toda. Está bem assim! Ficastes desembaraçado. Suba agora! E este aí da púrpura e do diadema, esse com ar de fúria! Quem és tu?

LAMPICO
Lampico, tirano de Gela.1

HERMES
Então, Lampico, apresentas-te com tanta coisa?

LAMPICO
O quê?  Devia chegar nu, ó Hermes, um homem com funções de tirano?

HERMES
Tirano, coisa nenhuma, mas morto, sim! Portanto, jogue fora tudo isso!

LAMPICO
Veja, lá vai a riqueza!

HERMES
Jogue fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo aqui dentro, elas farão peso no barco.

LAMPICO
Então, deixe-me ao menos ficar com o diadema e o manto.

HERMES
De modo nenhum, mas jogue fora isso também!

LAMPICO
Que seja! O que mais ainda? Lancei tudo fora, como vês.

HERMES
E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança tudo isso fora também!

LAMPICO
Veja bem, estou despido.

HERMES
Entre agora. E tu, o espesso, o carnudo, quem és?

DAMÁSIAS
Damásias, o atleta.

HERMES
Sim, pareces. Eu sei, porque te vi muitas vezes nas palestras.2

DAMÁSIAS
Sim, ó Hermes. Mas receba-me, porque estou nu.

HERMES
Não estás nu, meu caro, rodeado de tantas carnes. Por isso dispa-as, senão afundarás o barco, coloques nele apenas um dos pés. Mas jogue fora também essas coroas e reclames (das tuas vitórias).

DAMÁSIAS
Olhe aqui! Estou verdadeiramente nu, como vês, e na mesma situa­ção dos outros mortos.

HERMES
Tanto melhor! Entre então. Tu também, ó Cráton, mas deixe a riqueza, a moleza por acréscimo e o gozo. Não tragas contigo os sacrifícios fúnebres nem os títulos dos antepassados. Deixe também a árvore genealógica e a glória e alguma proclamação que a cidade tenha feito a teu respeito e as inscrições das estátuas. E não digas que em tua honra levantaram um gran­de túmulo, porque tudo isso pesa, mesmo só mencionado.

CRÁTON
Não é por vontade, mas joguei fora tudo isso. Aliás, o que fazer?

HERMES
Oh, Oh, Oh! Tu aí, ó couraçado! Que queres tu? Ou, por que é que carregas esse troféu?
SOLDADO
Porque venci, ó Hermes, e me distingui e a cidade me honrou.

HERMES
Lance por terra o troféu, porque no Hades reina a paz e as armas não são necessárias. E este, grave, a julgar pela postura, arrogante, de semblante carregado, metido nas suas reflexões, quem é ele, que assim deixou crescer a barba?

MENIPO
Um filosofo, ó Hermes, ou antes um impostor, pleno de charlatanice. Assim, fá-lo despir-se também! Verás muitas coisas, e bem risíveis, que ele esconde sob o manto.

HERMES
Põe à parte a postura, em primeiro lugar, e depois tudo isso mais! Ó Zeus, quanta fanfarronice ele transporta, e quanta cretinice, astúcia, gló­ria vã, perguntas insolúveis, discursos espinhosos e conjecturas intrincadas. E ainda a grande quantidade de esforço vão, a grande taga­relice, as ninharias, a pequenez de espírito, e, por Zeus, todo esse ouro que está à vista e a vida regalada, o descaro, a preguiça, o gozo sensual e a moleza. Nada disso me passou despercebido, por melhor que o es­condas. Jogue fora também a mentira, a presunção e a crença que és melhor do que os outros, por que se embarcares com tudo isso, qual o navio de cinqüenta remadores, capaz de te receber?

FILÓSOFO
Jogo isto fora, portanto, já que assim o ordenas.

MENIPO
Mas que ele jogue fora também a barba, ó Hermes, que é pesada e espessa, como tu vês. São, pelo menos, cinco minas3 de cabelos!

HERMES
Tens razão. Tu, jogue fora também a barba!

FILÓSOFO
E quem vai ser o barbeiro?

HERMES
Menipo que aqui está, com o machado dos operários da construção naval. E, cortá-la-a, usando a escada como cepo.

MENIPO
Não, Hermes, dê-me a serra, será mais risível!

HERMES
O machado basta. Excelente! Agora tens um ar mais humano, sem o cheiro de bode.

MENIPO
Queres que eu lhe tire um pouco também das sobrancelhas?

HERMES
Perfeitamente, porque ele fê-las subir pela testa acima, não sei com que intenção, empertigando-se todo. O que é isso? E tu choras, ó porca­ria,4 e perante a morte acovardas-te? Ora, suba lá!

MENIPO
Há ainda uma coisa, e a mais pesada, que ele esconde no sovaco.

HERMES
O quê, ó Menipo?

MENIPO
A adulação, ó Hermes, que lhe foi muito útil na vida.

FILÓSOFO
Então também tu, ó Menipo, jogue fora o atrevimento e a palavra livre e a despreocupação e a sobranceria e o riso, porque, afinal, entre os restantes, só tu ris.

HERMES
De modo algum. Pelo contrário, conserve essas qualidades! É que elas são todas leves e perfeitamente portáteis e úteis para a viagem.
E tu, orador, jogue fora essa enorme verborréia interminável das tuas frases e as suas antíteses e simetrias e períodos e barbarismos e toda a restante carga de palavras.

ORADOR
Pois bem, lanço-as fora.

HERMES
Perfeito. Então, solte as amarras! Recolhamos nós as escadas! Le­vantem a âncora! Desferre a vela! Dirija o leme, ó barqueiro! Naveguemos, com felicidade!
Por que gemeis, ó palermas, e principalmente tu, ó filósofo, cuja barba foi, há pouco, devastada?

FILÓSOFO
Porque eu acreditava, ó Hermes, que a alma era imortal.

MENIPO
Ele mente. Aliás, é natural que esteja incomodado.

HERMES
Com que motivos?

MENIPO
Porque já não terá jantares caros, nem sairá de noite, às escondi­das de todos, com a cabeça encoberta pelo manto, percorrendo em sé­rie os prostíbulos, nem receberá dinheiro desde a manhã, em troca de enganar os jovens com a sua ciência! É isso que o incomoda.

FILÓSOFO
E tu, ó Menipo, não estás aborrecido de ter morrido?

MENIPO
Como? Eu que me apressei em ir ao encontro da morte,5 sem que ninguém me chamasse! Mas, a propósito, ninguém ouve um ruído como de pessoas que gritam da terra?

HERMES
Sim, Menipo, não vem só de uma região, mas uns, indo até à Assem­bléia, cheios de contentamento, riem por causa da morte de Lampico. A mulher dele aguarda os insultos com fartura, do mulherio, enquanto os filhos, apesar de pequenos, também levam pedras em quantidade, jogadas pelos garotos. E outros elogiam Diofanto, o orador, que declama um dis­curso fúnebre em Sicione sobre Cráton aqui presente. E por Zeus, até a mãe de Damásias, gemendo, inicia o coro de lamento das mulheres. Quanto a ti, ó Menipo, ninguém por ti chora, só tu jazes em repouso.

MENIPO
De forma nenhuma. Pelo contrário, ouvirás, dentro em pouco, os cães que uivam de maneira mais plangente, por minha causa. E os cor­vos que batem as asas, quanto se juntarem para me sepultar.

HERMES
És valente, ó Menipo. Mas, uma vez que chegamos, vós aí, começai a andar para o tribunal, seguindo reto por aquela rua. Eu, de minha par­te, vou buscar os outros com o barqueiro.

MENIPO
Fazei boa viagem, ó Hermes! E nós também, sigamos em frente. Porque hesitais ainda? É forçoso que sejais julgados. E dizem que as sentenças são pesadas: rodas, pedras e abutres.6 Será mostrada com ri­gor a vida de cada um.



Este diálogo faz lembrar a Barca do Inferno de Gil Vicente. Aliás, o diálogo de Luciano já estava traduzido para latim, quando Gil Vicente escreveu o seu auto.
Cidade da Sicília, fundada por colonos gregos.
Palestra, em grego, é o ginásio, onde Hermes estava presente, em estátua.
A mina era uma medida de peso e uma moeda. Como medida de peso, equivalia a cerca de 436 gramas.
xdOcreua (= c átharma).
Menipo suicidou-se por enforcamento. Ver o passo em Diógenes Laércio, VII, 100.
Alusão aos castigos de Prometeu, Sísifo e Tício.

quarta-feira, maio 11, 2011

Dialogo 2: DE EROS E ZEUS*

(Do livro Dialogo dos Deuses de Luciano de Samósata)




EROS
(Em atitude de suplicante) Ora, se cometi alguma falta, perdoa-me, Zeus!  É que não passo de uma criança pequena, ainda inconsequente!

ZEUS
(Sorrindo, com ar de troça) Tu, Eros, uma criancinha, tu que és muito mais velho do que Jápeto**?! Só porque não tens barba crescida nem cabelos brancos, julgas que podes passar por criança, sendo tu um velho astuto?

EROS

E que mal é que te fez este velho, como tu dizes, a ponto de tu quereres prendê-lo?

ZEUS
(Visivelmente irritado) (Ó maldito, vê lá se foi pouco aquilo que me arranjaste!
Andas a gozar-me de uma tal maneira, que não há nada em que tu não me tenhas feito transformar: sátiro, touro, ouro, cisne, águia! E no entanto nunca fizeste com que alguém se apaixonasse por mim, nem nunca fui considerado atraente por nenhuma mulher, por causa de ti ! Antes pelo contrário, tenho de recorrer a sortilégios para com elas e ainda utilizar disfarces. Consequentemente, elas apaixonam-se pelo touro ou pelo cisne, mas se me vêem em pessoa, morrem de medo.

EROS
(Tentando justificar-se) Justamente ! Ó Zeus, então elas, sendo mortais, não conseguem suportar a contemplação da tua imagem***.

ZEUS
Então e como é que Branco e Jacinto amam Apolo****?
 
EROS

Ah, mas Dafne***** fugiu dele, apesar da sua longa cabeleira e do seu ar jovial.
Se pretendes ser desejado, não agites a égide, nem lances o raio. Apresenta-te sim o mais atraente possível, escovando os caracóis de ambos os lados e apanhando-os com um diadema. Veste-te de púrpura e calça umas sandálias, mo­vimenta-te ao ritmo do som da flauta e de tamboris e verás como te seguirão em maior número do que as Ménades****** de Diónisos.
 
ZEUS
(Irritado com os conselhos de Eros, afastando-o) Livra! ... Nunca aceitaria um tal subterfúgio para conseguir tornar-me desejável!

EROS
(Encolhendo os ombros) Então, Zeus, não penses em amar! Pois assim é mais fácil.

ZEUS
(Desesperado, agarrando Eros) Não! Amar, sim, mas consegui-lo sem tanto esforço! Só nessas condições é que vou largar-te!



    *Eros distinguiu-se como deus do Amor. Zeus era também notório pelos seus diversos relacionamentos amorosos, não obstante o seu ca­samento com Hera.

    **Jápeto era um dos Titãs. A referência corresponde a um provérbio, equivalente, por exemplo, a 'mais velho do que os dinossauros

    ***Na Antiguidade existia a idéia de que a vista de um deus era difícil de suportar.

    ****Os relacionamentos de teor homossexual não constituíam pro­priamente uma excepção nem provocavam o assombro nas civilizações da Antiguidade. Branco e Jacinto eram dois jovens, que cativaram os amores do garboso deus Apolo.

    *****Amada por Apolo, Dafne (em Grego, loureiro) sempre tentou evitar o deus. Temendo ser alcançada por ele, pediu para ser trans­formada em loureiro.

    *****Estas entidades femininas (Bacantes), imbuídas do espírito dio­nisíaco, formavam um cortejo. Possuídas, em delírio e num estado de loucura divina, seguiam nuas ou seminuas, dançando ao som de flautas e tamborins.

terça-feira, maio 10, 2011

Dialógo 11: DE AFRODITE E SELENE *

(Do livro Dialogo dos Deuses de Luciano de Samósata)





AFRODITE
Então, Selene, o que é isso que dizem que tu andas a fazer? - Quando desces até ao Cairo páras a tua carruagem para observar Endímion, a dormir ao ar livre, pois é um caçador, e por vezes, a meio do teu trajecto, chegas a descer até junto dele?!

SELENE
Pergunta ao teu filho**, Afrodite, que me parece ser ele o culpado disso.

AFRODITE
Ah! Ele é um insolente! Até a mim, a sua própria mãe, ele faz coisas inimagináveis ! Ora me faz descer ao Ida, por causa do troiano Anquises***, ora ao Líbano, devido àquele rapaz assírio****, que ele fez com que fosse digno de ser amado por Perséfone*****, apoderando-se de metade do meu amor! A tal ponto de muitas vezes o ter ameaçado de, se não parasse de fazer essas coisas, lhe quebrar o arco e as flechas e des­pojá-lo da aljava e das asas******! E ainda lhe dei umas palmadas nas nádegas com a sandália. Mas não sei de que maneira, nesse preciso instante ele mostra-se receoso e suplicante mas, em pouco tempo, esquece tudo.
Mas diz-me, Endímion é belo? É que assim os males são mais fáceis de suportar.

SELENE
A mim parece-me muito belo, Afrodite, principalmente quando, depois de colocar a clâmide debaixo de si, sobre uma pedra, se deita, segurando, com a mão esquerda, os dardos a deslizarem-lhe da mão, e envolvendo, com a direita do­brada por cima da cabeça, a face. Deste modo, estando mer­gulhado no sono, inala uma lufada de ambrósia. E então eu desço, sem fazer barulho, caminhando nas pontas dos pés, para que, se despertar, não fique perturbado (lançando um olhar de cumplicidade para Afrodite) - tu sabes! Para que é que vou dizer-te o resto? (Com um longo suspiro) –  So­mente que estou a morrer de amores! ...

*O diálogo travado entre Afrodite e Selene alude à figura de Endímion. Este jovem e esbelto pastor despertou a atenção de Selene, a qual, por seu turno, terá intercedido junto de Zeus para que este lhe concedesse a realização de um desejo. Ora Endímion escolheu ter um sono eterno.   
** Selene refere-se a Eros, o deus do Amor.
*** Dos amores de Afrodite e de Anquises nasceu Eneias.
**** Afrodite refere-se a Adónis. A cólera de Afrodite fizera com que a sua mãe, Mirra, mantivesse uma relação incestuosa com o seu pai, Tiante, por doze noites. Ao acordar do transe em que se encontrara e reconhecendo a relação que mantivera, Tiante perseguiu a filha, no in­tuito de matá-la, pondo assim termo à sua vergonha. Contudo, os deu­ses apiedaram-se dela e transformaram-na numa árvore, a mima, de cuja casca fendida nascera o garboso Adónis. Cativando as paixões de Afrodite e de Perséfone, por decisão de Zeus, Adónis passaria um terço do ano com Afrodite, outro com Perséfone e a restante parcela do tempo com aquela que mais lhe aprouvesse. A escolha recairia sobre a deusa do Amor.
***** Esposa de Hades, o deus dos Infernos.
****** Eros representa-se vulgarmente como uma criança alada, carre­gando uma aljava cheia de setas, com as quais inflamava as paixões.

segunda-feira, maio 09, 2011

Dialogo 12: De Afrodite e Eros


(Do livro Dialogo dos Deuses de Luciano de Samósata)


Afrodite
(num tom repreensivo)Ó Eros, meu filho! Olha para aquilo que estás a fazer! Não estou só a falar da sua conduta na Terra – persuadires os homens a fazerem muitas coisas contra eles próprios e contra os outros – mas também o que fazes no Céu – Apresenta-nos Zeus sob muitas formas, transformando-o no que te apetecer; a Selene, fazê-la descer dos céus; a hélios, obriga-lo alguma vezs a retardar-se com Climene, esquecendo de conduzir seu carro! Até a Mim, a Tua mãe, tu tratas com insolência e comete atrevimentos...
Então tu, ó malvado sem comparação, até a própria Reia, já velha e na qualidade de mãe de todos os deuses, tu a induziste a nutrir um amor juvenil e a desejar aquele rapaz frigio e agora ela, enlouquecida por ti, atrelou os Leões e, na companhia das coribantes (elas também enlouquecidas) dão voltas ao Ida para cima e para baixo, enquanto ela grita por Atis, no que respeita as coribantes, por seu turno, um,a delas transpassa o cotovelo com uma espada, outra, toca o corno;outra ainda ribomba o timbale; outra faz ressoar o címbalos, em suma no Ida, tudo é ruína e loucura.

Agora eu que concebi uma tamanha peste, temo que Reia, nun acesso de loucura, ou a libertar-se da insanidade e voltando a ser novamente ela própria, mande as coribantes agarrarem-te para te despedaçarem ou te lançarem aos leões! Receio estas coisas, ao ver-te aventurares-te desta forma.

Eros
( num tom calmo) sossega mãe, que eu já estou familiarizado com os leões! Algumas vezes, montado nas suas costas e segurando suas jubas, conduzo-os. Eles acariciam-me deixam-me passar a mão pelo focinhoe restituem-ma intecta, depois de ma terem lambido.
Acaso Reia vai ter tempo pra mim, quando está ocupada por inteiro com Átis?! E além disso, que faltaé que eu cometi ao mostrar-vos onde estão as coisas belas? Não cedam vocês à beleza! Nem venham agora a culpar-me disso. Ou tu não queres mais, ó mãe, continuar a amar o Ares, nem que ele continue a amar-te?

Afrodite
Como és hábil e consegues sempre sair a ganhar de todas as situações! Mas um dia hás de lembrar das minhas palavras.