quarta-feira, abril 27, 2011

Jano e Jana




No Paganismo Imperial Romano, sabemos muito pouco sobre as divindades ancestrais dos romanos e o que mais conhecemos são as divindades gregas que se fundiram com as antigas crenças dos povos itálicos, formando o que conhecemos como paganismo greco-romano.

Entre os povos Itálicos que depois iriam se juntar, ou serem juntados à força, para a formação de Roma, existiam divindades fortíssimas que se fundiram com as dos invasores indo-europeus criando um panteão diversificado e fundamentado no divino casal criador e mantenedor da vida na terra.

Depois, com a expansão da Republica Romana, passou-se a assimilar deuses de outras civilizações que conquistavam e os levavam para Roma com o intuito de dizer aos povos submetidos que mesmo os seus deuses preferiam o Império Romano ao país e região que antes eram cultuados, uma maneira simples de dizer a estas populações que era muito bom aceitarem a cidadania romana, já que até mesmo os seus deuses haviam feito isto.
Divindades importantes do paganismo arcaico romano são perdidas neste processo: Bona Dea é sincretizada com Deméter, quando na verdade ela é Fauna, a deusa dos animais, Fauno, o seu marido, teve mais sorte, pois foi assimilado com Pã, praticamente com as mesmas funções. Centenas de outros deuses de importância vital para o desenvolvimento de Roma foram perdidos ou assimilados a divindades gregas, perdendo sua função original.
Do casal primordial, Gaius e Gaia, só nos restou a fórmula do casamento romano “Ubi tu Gaius ego Gaia” Quando fores Gaius eu serei Gaia, que sela uma união eterna.

De outro importante casal Jano e Jana (Ianus e Iana no original), ela a Grande Mãe de toda a vida se transforma em Diana, que de Grande Mãe passa a ser identificada com a virgem Ártemis, perdendo todos os seus aspectos de fecundidade. E Ianus passa a ser considerado apenas o deus das Portas e dos Princípios. Um eco longínquo nos faz lembrar dele todo principio de ano, quando entramos no mês de Janeiro, o mês de Jano.

É de Jano que vamos falar nesta coluna. Podemos depois falar de outros deuses que se perderam ou que perderam suas atribuições e que é preciso recuperar o seu sentido original. E como podemos fazer isto se o conhecemos muito pouco?

Jano é um deus primordial na Itália, anterior inclusive à chegada de Saturno, destronado por Júpiter, tanto que foi ele quem recebeu o senhor dos Titãs na península e juntos fizeram a Idade do Ouro italiana. Possivelmente Jano e Jana são filhos do casal criador Gaius e Gaia, que, e eram representados pelo Carvalho (Quercus Robur) e pelo Azevinho (Quercus Ilex). O carvalho por ter o ciclo anual e o Azevinho perene.

Jano era representado com uma cabeça bifronte (com dois rostos), um jovem e imberbe olhando para frente, podendo ver o futuro, e outro mais adulto e barbado olhando para trás, vendo o passado. Era considerado nos documentos que persistem no tempo como o Deus das Portas e dos Inícios, mas provavelmente nos antigos cultos latinos e/ou etruscos ele representava mais que isto. Sendo o presente, que contempla o passado e o futuro, podemos considera-lo como um senhor do tempo, como o Chronos grego, ou ainda mais, já que ele era o deus das portas e das chaves, ou seja, tinha também o poder de abrir e fechar as portas da eternidade. Contemplando o mundo a partir de todas as perspectivas, visualizando a totalidade, sem nenhuma dualidade. Para Jano, não existia o bem e o mal, o branco e o negro, luz e trevas. Tudo era assimilado e compreendido por ele.

Apenas um deus com estas as características poderia ser capaz de penetrar, compreender e dar sentido à natureza criada por Jana, a Deusa Mãe adorada nos cultos ancestrais, através de mil nomes. Jana, Iana, Djana, Diana e com todas as variações possíveis da Raiz indo-européia “Dan” Don, Danan, e outras tantas, neste contexto, cuidava amorosamente de tudo que vivia e crescia no mundo. Jana incorporava a ordem universal, desde o seu domínio sagrado da realidade temporal, da sacralidade cíclica à transcendência. Nela tudo se fundia e os contrários se encontravam criando o sentido do absoluto. Mesmo o posterior cristianismo adota Santa Ana, a mãe da virgem Maria, mãe de Deus, deixando claro que Jana, acompanhada de Jano, permanece absoluta como a grande Deusa Mãe universal.

Jano controlava a vida que Jana criava e nutria. Estas eram as portas que se abriam e se fechavam, transformando em presente o passado e o futuro, que só existem para quem não crê na totalidade da vida. Como os ciclos do carvalho, que aparentemente morre e perde suas folhas, para renascer de si mesmo, representando a renovação de todo o universo representado por Jana e sua imagem perene do azevinho, que nunca perde suas folhas.
Ambos, enquanto simbolizavam a união dos contrários, eram na realidade uma coisa só: uma idéia superior que rompe com todos os padrões estabelecidos pelas aparências, eram uma unidade e marcavam a quebra de todas as falsas realidades e limites da vida.

No final do Império, quando os romanos davam mais atenção aos seus deuses familiares, Penates e Manes, e os sacrifícios e festivais dos grandes Deuses do panteão Greco Romano eram considerados como acontecimentos sociais ou uma obrigação cívica, parecida com pagar imposto, os cultos de mistérios apareceram com toda a força, trazendo de volta o culto às grandes mães primordiais como Isis e Cybele, representadas pelo perene Azevinho ou seus filhos e companheiros que regem os ciclos do mundo como Átis, Mitra ou Dionisio, que tinham em sua história um ciclo de morte e renascimento como o do Carvalho de Jano.

O que vem depois é o cristianismo, que durante mil anos ocultou o lado feminino da divindade, mas depois deste tempo entrou em colapso, pela falta da grande mãe, que foi restaurada na figura da Maria filha de Ana. E por uma incrível “coincidência”, as primeiras estátuas da Virgem que foram cultuadas tinham as mãos e o rosto negro, como a terra fértil e o lodo criador, e nos primeiros grupos que representavam Ana, Maria e Jesus havia uma desproporção entre as figuras, com Santa Ana sendo representada muito maior que Maria, que por sua vez também era desproporcional ao menino Jesus, mostrando claramente que Ana era superior aos demais.

Com o tempo o cristianismo voltou ao equilíbrio e sobreviveu mais mil anos com um masculino superior, porém com uma Maria que interfere e consegue favores a quem a pede diretamente a ela.
Maria, filha de Ana, se mostra como sua mãe, com muitas formas e muitos nomes, e aparece quando menos esperamos em vidraças, espelhos ou desenhada pela chuva em pedras e paredes. Aparece para as pessoas simples e para crianças, reafirmando sua perenidade, e Jano ainda nos abre as portas dos novos ciclos, como no mês de janeiro, embora muitos acreditem que eles sumiram do mundo há milênios.

terça-feira, abril 26, 2011

MITO E MITOLOGIA



(Texto Fundamental para a compreensão e estudos da mitologia)

 DE WALTER BURKERT

Tradução da Prof.ª Dr.ª Maria Helena da Rocha Pereira da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

NOTA PRÉVIA
 
A discussão sobre a interpretação do mito principia, como tantas outras críticas à tradição, com os Sofistas. Mas é a partir dos finais do século XVIII, com Herder, que ele se torna objeto de investigação científica. Um século volvido, a formação de novos ramos do saber atraiu para novos campos a exploração desta intrigante manifestação cultural, que aos poucos se vai alargando a outros povos para além do grego, quer através da decifração de esquecidos poemas orientais, quer pela análise directa de civilizações orais dos nossos dias, nos mais recônditos lugares do planeta. Assim, não só classicistas como orientalistas, germanistas, antropólogos, teólogos, psicólogos se têm dedicado ao assunto, propondo exegeses não raro antagônicas, muitas das quais o tempo se tem encarregado de obliterar, embora seja arriscado afirmar que qualquer delas se encontre totalmente extinta. A influência da teoria psicanalítica e, nos últimos decénios, do estruturalismo, são uma realidade indesmentível, e muitos dos epígonos deste último sistema continuam a sobreviver às vigorosas e bem fundamentadas críticas que lhes têm sido dirigidas em anos recentes.

No meio desta confusão doutrinal, resultante, em parte, da multiplicidade de formas a que a palavra mito se aplica', sobressaem, pela sua clareza, rigor interpretativo, riqueza de formação e subtileza na relacionação dos fenômenos, as obras daquele que é hoje geralmente considerado o melhor especialista da religião grega, o Professor Walter Burkert. Das muitas que o notabilizaram, escolheremos, para servir de orientação geral ao complexo tema, dado o seu carácter propedêutico, a introdução que o célebre professor da Universidade de Zurique escreveu para a publicação monumental Propyläen Geschichte der Literatur, Vol. I, publicada em 1981. Foi daí que traduzimos as páginas que se seguem, graças ao generoso consentimento, quer do autor, quer da editora, Propylãen Verlag, de Berlim, a quem endereçamos os nossos agradecimentos. Estes não ficariam completos, porém, se não mencionássemos aqui também o nome do nosso colega de Estudos Germanísticos, Professor Doutor LUDWIG SCHEIDL, que com profundo saber e espírito atento reviu a totalidade da nossa versão.

Este livrinho, de uma apresentação modesta, que contrasta com o seu indiscutível valor científico, destina-se aos nossos estudantes. Possam eles encontrar aqui a base de que necessitam para entrar num mundo em que a imaginação, a experiência, a intuição se entrecruzam, para produzir essa estranha e sempre actual forma de cultura que é o mito.

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA

1 Como escreveu G. S. Kirk (The Nature of Greek Myths, 1974, p. 18), "parece não ter ocorrido a muitos especialistas que os milhares de histórias individuais a que se aplica geralmente o nome de "mito" cobrem um enorme espectro de assuntos, estilos e sentimentos; de modo que é provável a priori que a sua natureza essencial, a sua função, finalidade, origem, variem também".

 
ESSÊNCIA E FUNÇÃO

"Mythos" - latinizado em " "mythus" - tornou-se, pelo menos desde os anos 20 deste século, de novo respeitável, e continua a falar-se dele, sem que contudo se liberte da ambiguidade que lhe está adstrita: um mito é ilógico, inverosímil ou impossível, talvez imoral, e, de qualquer modo falso, mas ao mesmo tempo compulsivo, fascinante, profundo e digno, quando não mesmo sagrado. Faz-se apelo, ora por uma tendência emancipadora, ora nostálgica, a considerar um mito como pré-juízo, e assim a superá-lo ou a reconduzi-lo à sua ligação com uma pré-ciência originária.

Que uma tradição cultural é veiculada pelos seus mitos, é tarefa e resultado de investigação científica desde os tempos de Johann Gottfried Herder (para tal deu um importante impulso Christian Gottlob Heyne - cf. Otto Gruppe, Geschichte der Klassischen Mythologie und Religionsgeschichte, 1921, 109-112). Aí mitologia designa tanto colecção e sistema dos mitos de um povo, como a ciência que se ocupa do seu significado. A Etonologia reuniu Mitologias de todos os povos" (cf. John Arnold MacCulloch, Louis H. Gray; Alexander Eliot, Pierre Grimal; G. W. Haussig). Tomou-se frequentemente como estádio necessário ao desenvolvimento da história da humanidade uma "idade mítica" assinalada por uma consciência mítica" especial. O facto de, com tudo isto, se empregar sempre a designação do grego antigo, "mythos" mesmo, é mais do que um acaso. Na cultura antiga - pré-cristã - o poder dos mitos é de facto de uma qualidade quase única: dominam poesia e artes figurativas, mesmo a religião se exprime de preferência por meio deles, e a filosofia nunca se emancipou deles completamente. Mas também na política são pressupostos como dado adquirido e actuante, emprestam o seu prestígio a grandes famílias e condicionam uma grande parte do que é compreensão própria para o homem comum. E, como a cultura grega era pensada e tinha força para se impor, não como uma norma jurídica ou pelo poder de escritos revelados, mas acima de tudo como forma artística, em toda a parte no domínio da sua irradiação se encontra a mitologia "clássica", nem que seja, em última análise, só como forma de cultura residual: é preciso, afinal, saber o que é um "Caos" ou uns "estábulos de Augias", um "calcanhar de Aquiles" ou "um cavalo de Tróia".

Há muito que a Mitologia aparece de preferência sob a forma de um manual, que enfileira uma quantidade desorientadora de nomes em curiosos fios de acção e que, da vitalidade do mito, não preservam, afinal, mais do que um herbário o suco e o perfume das plantas. Onde e sob que forma se pode encontrar o mito vivo, sobre isso não há certamente uma opinião unânime. O mito como moda aproxima-nos sobretudo de equívocos modernos, e em primeiro lugar deste, de que o mito radica de preferência nas profundezas irracionais ou em zonas-tabu para além da linguagem - ou, de modo mais banal, só o que é especialmente primitivo é mítico. Na verdade, mito não tem nada a ver com mística. A palavra grega "mythos" significa "fala, narração, concepção". No tempo do Iluminismo grego, contudo, transformou-se no termo próprio para designar à distância as velhas narrativas, que não eram verdadeiramente para serem tomadas a sério. Apesar disso, o mito revela-se numa cultur superior, adulta e madura.

Os mitos são - e isto é fundamental - narrativas tradicionais. Nessa medida, a mitologia é um domínio parcelar da investigação geral sobre a narrativa. Só é difícil delimitar os mitos no seu verdadeiro sentido da multiplicidade de tipos narrativos existentes. Um mito pode ser contado como um conto (Märchem), mas, no entanto, diferencia-se dele pelo facto de, normalmente, não ser contado por si mesmo e já não o ser nada, sobretudo, para crianças; mito é narrativa popular, e contudo acessível a uma formulação individual, e até, em grego, receptáculo da poesia clássica do mais alto nível; o mito coincide, em grande parte, com a lenda (Sagen) e contudo é duvidoso se é possível extrair dele um "núcleo histórico".

MITO E MITOLOGIA II


ESTRUTURAS E VARIAÇÕES

 É costume nomear e designar os mitos por nomes: o mito de Édipo, de Medeia, de Orestes. E contudo os nomes são um elemento superficial, inconstante e multiforme. Alguns derivam da acção, como Orestes, o "homem da montanha", que surge como vingador e foge como assassino. Outros são verbos-de-encher: um rei chama-se Creonte, "o que manda", uma filha de rei chama-se Creúsa. Muitos servem para ligar a narrativa à realidade social e local de então: Perseu como filho de Dânae é representante do ramo dos Dânaos que se estabeleceu em Argos e funda Micenas, o castelo mais poderoso desta paisagem.

Poucas em número e recorrentes de forma estereotipada são, em contrapartida, as estruturas da narrativa; por isso se voltou especialmente para elas a atenção da investigação mais recente. A maior parte das sequências narrativas são, no fundo, tão simples como fundamentais, actantes "bióticos" (o termo " biótico" foi introduzido por Max Luethi, Deutsche Zeitschrift fuer Volkskunde 2, 1973, 292), que estavam desde há muito delineados em modelos de comportamento na procura de alimentação, luta, sexualidade. Mas há uma particularidade que deve caracterizá-los como "estranhos", para entrarem na tradição narrativa, um elemento excepcionalmente reforçado ou uma espécie de congruência cristalina ou paradoxal.

De um Corpus de contos mágicos russos obteve Vladimir Propp em 1928 uma "Morfologia do Conto", que continua a satisfazer. Descreve-se um esquema narrativo que pode designar-se por "aventura" ou "procura" ("quest" ), como uma sequência de trinta e um elementos, "funções" : Por perda ou por incumbência, surge a missão, um herói prepara-se para o seu cumprimento; parte, encontra oponentes e adjuvantes, consegue um talismã decisivo, coloca-se perante o oponente, vence-o, o que não raramente deixa marcas nele mesmo; obtém o que procurava, põe-se a caminho do regresso, liberta-se de perseguidores e concorrentes; no final estão o casamento e a ascensão ao trono. É manifesto que decorrem segundo este padrão contos, romances e acções de filmes em incansáveis variações; e numerosos mitos gregos mantêm-se. Assim, os "trabalhos" de Héracles pertencem naturalmente a este tipo. Por exemplo, para ganhar os bois de Gerião, o herói tem de vaguear até aos confins da terra, no longínquo ocidente, forçar o deus do sol a pôr-lhe à disposição a sua taça dourada, na qual ele pode viajar sobre a corrente do Oceano até à "Ilha Vermelha"; aí mata o pastor, o cão de guarda de duas cabeças, o senhor tricórpore do gado de Gerião, e finalmente, traz de volta, com algumas dificuldades, os bois para Argos. De modo semelhante, de cada vez com particularidades marcantes, Héracles traz cavalos, javalis, corças, maçãs de ouro, até mesmo a oliveira de Olímpia (Burkert, 1979, 83-98). A viagem dos Argonautas tem como objectivo o velo de ouro, na longínqua terra do Sol, Aia: Jasão reúne os adjuvantes certos e constrói o primeiro navio, encontra o caminho no meio de dificuldades, executa as tarefas impostas pelo rei dos bárbaros, rapta, juntamente com o velo, a neta do Sol, Medeia, escapa à perseguição e chega a casa - em todo o caso, falta o desfecho feliz do conto. Por sua vez, por outro caminho, com outros adjuvantes e meios, Perseu ganha a cabeça de Medusa, o que lhe garante as futuras vitórias, de molde a ele poder desposar Antrómeda e tornar-se rei de Micenas. Do mesmo modo a angústia da "procura" e regresso cristaliza no quadro do Labirinto. Uma aventura de qualidade especial é a viagem ao além, tal como é contada, por exemplo, de Orfeu: para além da luta e rapto, trata-se aqui em primeiro lugar de ganhar sabedoria.

A luta, que fica no meio da seqüência das aventuras, pode, em virtude do seu significado na via real, reclamar também direito próprio. Narrativas de combates é coisa estimada e desenvolvem as suas próprias cristalizações (monografia completa: Fontenrose, 1959). O opositor do herói deve ser o mais possível perigoso e causador de medo, e de uma espécie tal que a sua derrota pré-determinada não desperta senão apaziguamento, por conseguinte, deve ser " mau" no sentido mais verdadeiro. Como distribuição ideal deste papel mostrou-se, já nas antigas culturas orientais, o monstro com caracteres ofídios, o dragão - esta é a palavra grega que significa serpente. O deus mais forte distingue-se pelo facto de ter dominado o dragão, a quem ninguém ousava contrapor-se: Jahvé de Israel triunfa de Leviatã, Marduk da Babilónia, de Tiamat, o deus hitita do tempo atmosférico, de Illuyankas, Zeus, de Tífon, Apolo de Delfos, de Píton. A tensão sobe, quando o herói é transitoriamente derrubado, aprisionado, enfraquecido, talvez mesmo morto. Isto liga especialmente o mito de Illuyankas e o de Tífon: o deus cai prisioneiro do dragão, e só quando um adjuvante lhe devolve, por uma artimanha, a sua força, é que ele pode, num segundo arranque, alcançar a vitória. Ao lado desta, há a possibilidade de dividir por dois protagonistas as duas lutas, derrota e vitória. O monstro como "anti-herói" torna-se assim " soberano interino", a vitória final é uma vingança, que traz de novo a ordem originária. É assim que o mito hitita da "realeza no céu", com a seqüência Anu (Céu)-Kumarbi-Deus-do-tempo-atmosférico corresponde até ao pormenor à sucessão dos deuses em Hesíodo: Uranos (Céu)-Kronos-Zeus. Aqui como ali, o soberano interino não-bom castra e engole o deus do Céu, facto que mais tarde ainda o derrubará. Contudo, em posição e função, é-lhe comparável também o mole assassino Egisto, entre Agamémnon e Orestes, o vingador do seu pai.

Quando o opositor é do sexo feminino, a narrativa do combate ganha uma dinânica adicional; motivações agressivas e sexuais cruzam-se em novas cristalizações. Héracles, Teseu, Aquiles lutam com Amazonas; Teseu gera numa Amazona um filho Hipólito, enquanto para Aquiles e Pentesileia amor e fúria combativa se enredam indissoluvelmente. Também a fase da " soberania interina" pode ser caracterizada pelo feminino: tanto em Lemnos como em Tirinto há um conto de uma rebelião de mulheres (Burkert, 1972, 189-216). Em Tebas, após a morte do rei, aparece a enigmática Esfinge, até que o novo rei, Édipo, a derruba. Clitemnestra, a assassina do marido e inimiga dos próprios filhos, desempenha junto de Egisto um papel análogo. Que a soberania do homem é a ordem certa, é um pressuposto do mito grego. É certo que Medeia assassina impunemente os reis em Iolcos e Corinto, assim como os próprios filhos, mas depois tem de retirar-se o mais depressa possível; também ela fica "soberana interina". Foi um equívoco concluir, a partir de mitos destes, que tenha existido um "matriarcado" pré-histórico.

Um outro grande grupo de narrativas gravita em volta de geração e nascimento. As leis biológicas conduzem a um travejamento da acção simples, que em si é pouco produtivo como narrativa, mesmo na forma de conto - a sua configuração como novela e romance é outra coisa. Contudo, o mito serve-se dela com predilecção, para descrever como em geral se origina qualquer coisa. Trata-se daquilo que foi gerado e nasceu de uma maneira única, o primeiro cavalo, um rei ancestral ou pai de uma raça, ou um novo deus. Então o ato é rodeado de singularidades fantásticas; porquanto o que é essencial só pode decorrer de condições especiais Poséidon transformou-se num garanhão e acavalou a Deméter "negra" metamorfoseada numa égua: assim se formou o cavalo Aréion. Zeus perseguiu Nemésis através de todas as suas metamorfoses em peixe, animal terrestre e ave: do ovo que finalmente se pôs saiu Helena, a mais bela mulher ou talvez mesmo uma deusa. A resistência da companheira proporciona frequentemente a tensão própria. Peleu agarrou a deusa marinha Tétis através de todas as suas metamorfoses, até que ela se rendeu e finalmente deu à luz Aquiles - em todo o caso, depois disso abandonou de novo a morada humana. O modo como Zeus se aproximou de Leda como cisne, de Europa como touro, de Dânae como chuva de ouro, de Alcmena, no entanto, com a máscara do seu próprio marido Anfitrião, em breve foi resumido em catálogos burlescos; contudo aqui trata-se também, em especial, dos filhos, Dioscuros, Minos, Perseu e Héracles. Atena esquiva-se a ser importunada por Hefestos, até que o sémen cai na terra: esta gera assim o rei primevo dos Atenienses, Erictónio; o Erectéion e o Templo de Hefestos ficam em frente um do outro, com a Agora de permeio. Curioso é, no sentido inverso, quando o parceiro feminino toma a iniciativa. É às deusas que isso compete: Afrodite concebe Eneias de Anquises, Deméter entrega-se a Iásion num campo três vezes lavrado, e traz ao mundo Plutos, a riqueza da colheita; para Iásion, isto significa a morte, para Anquises, uma enfermidade para toda a vida. Por último, o mito pode também dar notícia de uma geração e nascimento sem parceiro, de modo simultaneamente experimental ou como caso-limite: a virginal Atena salta da cabeça de Zeus, ao passo que Hera, em contrapartida, dá à luz sem marido o deus ferreiro Hefestos, que no entanto é coxo.

Resistência provoca tensão: a continuação típica da história do nascimento refere perigo mortal, perseguição e exposição do recém-nascido. Naturalmente que a criança é salva, cresce no meio dos animais, ladrões, pastores, ao encontro do seu grande destino. Esta forma de lenda do rei foi narrada acerca de Sargão da Acádia, como de Moisés, de Ciro, como de Rómulo (Gerhard Binder, 1964). Mas também Zeus teve de ser alimentado por uma cabra, escondido do pai na gruta cretense, e Dioniso cresceu na longínqua Nisa, junto das Ninfas, enquanto Hera perseguia a mãe e as amas dele.

Se o nascimento do herói for contado do lado feminino, temos diante a estrutura da "tragédia da donzela", da " heroína perseguida" (Burkert, 1979, 6 sq.). De novo se varia um esquema básico simples: uma rapariga, saída da segurança da família e da infância, é em primeiro lugar apresentada em solidão idílica -contudo pode também tratar-se de uma prisão; aí é dominada por um deus ou por um herói. Segue-se uma fase de castigo ou de martírios, até que, com o nascimento do filho do herói, talvez também só mais tarde por meio deste mesmo, se leva a termo a salvação. É assim que Dânae é aprisionada num aposento de bronze, e contudo fica grávida de Zeus em forma de chuva de ouro; é encarcerada numa arca com o seu filho Perseu e lançada ao mar, mas levada para terra na ilha longínqua de Serifos, onde Perseu pode crescer. Passam por sofrimento semelhante outras mães de heróis, por exemplo Calisto, a mãe-ursa do povo arcádio, ou Antíope, a mãe dos Dioscuros tebanos Anfíon e Zeto, ou Auge, a mãe de Télefo, fundador de Pérgamo. Na antiguidade tardia, então, Lúcio Apuleio deu forma literária ao esquema no conto de Amor e Psyche, que produziu ou pelo menos influenciou um dos mais apreciados tipos de conto (Detlef Fehling, 1977).

Todas estas estruturas são de imediato compreensíveis " bioticamente" . Em especial a "tragédia da donzela" segue, no fundo, o desenvolvimento natural da puberdade, passando pelo desfloramento e gravidez até ao parto. Outras formas parecem mais sombrias, perversas mesmo, especialmente um grupo que aponta para sacrifícios humanos e canibalismo. Também aqui é visível um fundo "biótico", o encadeamento indissolúvel de matar e comer, que contudo se configura de maneira muito específica nos rituais dos sacrifícios cruentos; estes pressagiam para os mitos a estrutura da sua acção. Assim, o pai esquarteja o próprio filho - Tântalo e Pélops - ou é levado por engano ou loucura a comer da carne do próprio filho assim é com Tiestes ou Tereu. Menos crua, mas não menos terrível é a situação, quando o pai sacrifica a própria filha: Ifigénia ou as filhas do rei de Atenas, Cécrops. O sacrifício do próprio filho aparece igualmente: Meneceu em Tebas, o filho de Idomeneu em Creta. Os paralelos do Velho Testamento, Isaac e a filha de Jefté, já há muito se fizeram notar. Depois são outra vez as mães que dilaceram os próprios filhos no delírio dionisíaco; assim em especial Agave e Penteu, que, como rei de Tebas, se arrogara o direito de opor resistência a Dioniso. A situação de crueldade, porém, é, na narrativa, sempre " tempo de excepção", tempo intermédio, desencadeado por uma história anterior; têm de seguir-se conversão, castigo, mudança, a fim de a narrativa atingir o seu alvo. No fundo estão rituais de sacrifícios com a sua ambivalência da culpa e expiação, derramamento de sangue e purificação (Burkert, 1972), tal como a referência a deuses, oráculos e santuários é especificamente própria deste tipo de mitos. E, contudo, sacrifício e fundação podem também aparecer no mito sob um aspecto completamente diferente, à distância do divino e com consciência própria do humano, não trágico, não sério, mesmo, até ao limite do cínico. Foi em mitos indianos em primeiro lugar que foi concebida e nomeada a forma do " trickster" (trampolineiro), do portador da cultura, que executa como se fosse um "desporto" infracções à regra e quebras de tabus e possibilita aos homens a existência, mesmo contra a vontade dos deuses. Nesse sentido se conta em babilónio a história de Atrahasis, o "que se distingue pela astúcia" (cf. Wilfred George Lambert, Alan Ralph Millard, Atra-hasis. The Babylonian Story of the Flood, Oxford, 1969), em grego a de Prometeu, o amigo dos homens; este faz a divisão das vítimas de tal maneira que ficou para os homens praticamente toda a carne que se podia comer, e roubou a Zeus, do céu, o fogo igualmente necessário para cozinhar e trabalhar. É comparável o deu Hermes no Hino "homérico", que rouba os bois ao seu irmão Apolo, para podê-los matar e assar, além disso inventa a lira e canta a formação do Kosmos. Para Hesíodo é um sacrílego, que não pode escapar ao terrível castigo de Zeus; enquanto está agrilhoado no Cáucaso, uma águia come-lhe o fígado diariamente; mas os homens vivem do produto da sua astúcia. Um drama do começo da época sofística, o Prometeu Agrilhoado (transmitido como obra de Ésquilo, mas com a máxima probablidade composto por um outro poeta - Mark Griffith, The Authenticity of Prometheus Bound, Cambridge 1977) deu à rebelião do portador de cultura contra o deus a forma de um orgulho obstinado, que desde então define a compreensão que o homem tem de si próprio como atitude " prometeica".

Esta passagem em revista de estruturas da narrativa da mitologia antiga não pode ser sistemática nem exaustiva. Deve apenas dar indicações sobre o modo como as formas se repetem variando, como a dinâmica da acção está enraizada em programas tradicionalmente humanos mais genéricos; mas aqui e ali se tornou perceptível como os nomes, de caso para caso, apontam para realidades cada vez mais distintas. A maior parte pode aparecer como tipicamente humana. A singularidade da mitologia grega, em contraste com as de outros povos, pode, inicialmente, conceber-se de preferência como negativa: o elemento mágico passa a segundo plano - quase não há mitos de encantamento e desencantamento; também a narrativa-advertência ("cautionary tale") mal se encontra na sua forma pura. A maior parte das " histórias" antigas são de qualquer forma ambivalentes, susceptíveis de interpretações diversas. A sua " sabedoria" pode coordenar e fundamentar a realidade, pode orientar e esclarecer, no entanto muitas vezes tem de se lutar pela explicação; não se oferecem receitas prontas. A tradição mítica transcende as experiências individuais e por isso mesmo é, para cada um, mais um desafio do que uma solução, no trato com a realidade.