terça-feira, janeiro 24, 2006

Os Portadores de Sonhos




Gioconda Belli


Em todas as profecias

está prevista a destruição do mundo.

Todas as profecias dizem

que o homem criará sua própria destruição.

Porem os séculos e a vida que sempre se renovam

criariam também uma geração de amantes

e sonhadores;

homens e mulheres que não sonharam com a

destruição do mundo,

e sim com a construção do mundo das mariposas

e dos rouxinóis.

Desde pequeninos vinham marcados pelo amor.

Por trás de sua aparência cotidiana

guardavam a ternura e o sol da meia-noite.

Suas mães os encontraram chorando

por um pássaro morto

e mais tarde muitos foram encontrados

mortos como pássaros.

Estes seres coabitaram com mulheres translúcidas

e elas ficaram prenhes de mel e de filhos reverdecidos

por um inverno de carícias.

Foi assim que proliferaram no mundo os portadores

de sonhos,

atacados ferozmente pelos portadores de profecias

que falavam

de catástrofes.

Foram chamados iludidos, românticos, pensadores de

utopias,

disseram que suas palavras eram velhas

- e de fato eram porque a memória do paraíso

é antiga

no coração do homem -

os acumuladores de riquezas os temiam

e lançavam seus exércitos contra eles,

mas os portadores de sonhos faziam amor

todas as noites

e do seu ventre brotava a semente

que não somente portava sonhos mas que os

multiplicavam

e os fazia correr e falar.

E assim o mundo criou de novo a sua vida

da mesma forma que havia criado os que inventaram

a maneira

de apagar o sol.

Os portadores de sonhos sobreviveram aos

climas gélidos

e nos climas quentes pareciam brotar por

geração espontânea.

Quem sabe as palmeiras, os céus azuis, as chuvas

torrenciais

tiveram a ver com isso,

a verdade é que, como formiguinhas operárias

estes espécimes não deixavam de sonhar e construir

mundos formosos,

mundo de irmãos, de homens e mulheres que se

chamavam companheiros,

que se ensinavam a ler uns aos outros, consolavam-se

diante da morte,

se curavam e se cuidavam entre si,

se ajudavam

na arte de querer e na defesa da felicidade.

Eram felizes em seu mundo de açúcar e de vento

e de todas as partes vinha gente impregnar-se de alento

e de suas claras percepções

e de lá partiam os que os haviam

conhecido

portando sonhos,

sonhando com novas profecias

que falavam de tempos de mariposas e rouxinóis,

onde o mundo não haveria de findar na

hecatombe

mas onde os cientistas desenhariam

fontes, jardins, brinquedos surpreendentes

para fazer mais gostosa a felicidade do homem.

São perigosos - imprimiam as grandes rotativas

São perigosos - diziam os presidentes em seus discursos

São perigosos - murmuravam os artífices da guerra

Devem ser destruídos - imprimiam as grandes rotativas

Devem ser destruídos - diziam os presidentes em seus discursos

Devem ser destruídos - murmuravam os artífices da guerra.

Os portadores de sonhos conheciam seu poder

e por isso nada achavam de estranho

E sabiam também que a vida os havia criado

para proteger-se da morte que as profecias

anunciam

E por isso defendiam sua vida até a morte

E por isso cultivavam os jardins de sonhos

e os exportavam com grandes laços coloridos

e os profetas obscuros passavam noites

e dias inteiros

vigiando as passagens e os caminhos

procurando essas cargas perigosas

que nunca conseguiram encontrar

porque quem não tem olhos para sonhar

não enxerga os sonhos nem de dia, nem de noite.



E no mundo sucedeu um grande tráfico

de sonhos

que os traficantes da morte não podiam estancar;

em todas as partes há pacotes com laços de fita

que só esta nova raça de homens pode ver

e a semente destes sonhos não se pode detectar

porque está envolta em corações vermelhos

ou em amplos vestidos de maternidade

onde pezinhos sonhadores sapateiam nos ventres

que os carregam.

Dizem que a terra depois de os haver parido

desencadeou um céu de arco-íris

e soprou de fecundidade as raízes das árvores.

Nós sabemos que os vimos

Sabemos que a vida os criou

para proteger-se da morte que as profecias

anunciam.


(trad. Celso Japiassu)


Em ti la tierra

Pequeña
rosa,
rosa pequeña,
a veces,
diminuta y desnuda,
parece que en una mano mía
cabes,
que así voy a cerrarte
y a llevarte a mi boca,
pero
de pronto
mis pies tocan tus pies y mi boca tus labios,
has crecido,
suben tus hombros como dos colinas,
tus pechos se pasean por mi pecho,
mi brazo alcanza apenas a rodear la delgada
línea de luna nueva que tiene tu cintura:
en el amor como agua de mar te has desatado:
mido apenas los ojos más extensos del cielo
y me inclino a tu boca para besar la tierra.

Pablo Neruda

segunda-feira, janeiro 16, 2006

Romance da Deusa ll




A viagem começou com uma sensação de frio intenso, mas ao invés de me encolher na tentativa de me aquecer, meu corpo foi se enrijecendo, esticando e perdendo os movimentos. Em pouco tempo, as juntas endurecidas pelo frio começaram a se separar, os pés das canelas, os joelhos das coxas, o braço do antebraço e tudo morria. Apenas a minha mente estava ativa e viva, sentindo frio no meu corpo desmembrado.
Minha mente racional, tinha a consciência que estávamos numa manhã, porem, a noção de tempo era vaga e escurecia rapidamente, como se um dia inteiro tivesse passado em alguns minutos
Ela estava ao meu lado e eu sentia o seu calor, abri meus olhos com dificuldade e movi lentamente a cabeça para olha-la, e a vi dormindo do meu lado. Sobre seu rosto um fino véu com meandros de fractais cristalinos e transparentes. Alem do véu seu rosto trigueiro estava dourado como uma mascara de sarcófago, mas não me assustei ela estava tranqüila e linda como uma deusa adormecida, e tudo que consegui dizer foi: Eu te amo.
Seus olhos se abriram brilhando como duas estrelas rutilantes na lua negra. Sua boca se abriu num sorriso e disse: eu te amo! E eu não sei se com a mente ou palavras eu pedi: Me abrace, está muito frio e meu corpo congelado está se perdendo e fui abraçado por ela, que entrelaçando suas pernas nas minhas, e colando seu corpo ao meu, juntava com seu calor e devolvia a vida às partes mutiladas de meu corpo. Porém, melhor que me sentir aquecido era olhar para o seu rosto dourado e luminoso, agora já totalmente desvelado, do alto de sua cabeça, nascia por entre os cabelos quase negros um crescente lunar que envolvia um disco solar. Como Lúcio Apuleio, ao vislumbrar aquela que tem muitos nomes, com os cabelos cheios de estrelas, só não me joguei ao chão, pois não havia mais solo nem paredes. Com o abraço de Isis, meu corpo pertencia ao universo e neste, nós flutuávamos. E neste estado numinoso, fui beijado pela Deusa. Com a boca ainda fria e seca recebi a língua quente e molhada da divindade, sorvendo sua saliva e calor renascia, para uma nova vida, agora sem os limites da morte e tendo pela frente a infinita eternidade.
Enquanto me alimentava do seu calor e umidade, entrava em êxtase. O que até a pouco havia sido agonia se tornou encantamento e deslumbramento. Rodávamos por entre galáxias, eu inebriado de delicia e assombro fechei meus olhos num desmaio de arrebatamento, sugando a vida avidamente como uma criança recém nascida. Embalados pelos movimentos do universo ficamos naquele beijo, já que não existia tempo, por séculos e milênios até que me percebi acariciado por muitas mãos e ainda antes que abrisse os olhos, ouvi a deusa me dizer que tinha muitos braços e como despertando de um sonho transcendente percebi que entrava em outro sonho.
A deusa agora tinha muitos braços, sua língua cresceu e eu preso num abraço múltiplo, percebi, que eu também tinha muitos braços, e acariciava seus longos e escuros cabelos, pegava nos seus seios e quadris ao mesmo tempo que a puxava para mim. Como duas aranhas nos amávamos , nos agarrando e apertando, até o ponto que nossos corpos se fundindo no abraço se interpenetravam. Eu por mais que quisesse falar só podia balbuciar: Você é a Deusa, você é a Deusa...
Ela repetia: somos um só somos um só... Nossos corpos se moldavam contendo o universo e ao mesmo tempo estávamos sendo incorporados pelo espaço infinito. Estávamos repletos de estrelas e galáxias corriam dela para mim e de mim para ela, com os vasos sanguíneos repletos de luz nossos corpos brilhavam e dançávamos e nos amávamos prenhe de astros e estrelas.
Dançamos em circulo com todos nossos braços e atraiamos todo o cosmo para nós, até nem mais uma estrela restou, éramos apenas nós deus e deusa. Naquele momento estávamos plenos e repletos de luz, e nada existia a não ser nós que éramos um só, até que também fomos perdendo as cores, esmaecendo até nos perdermos na escuridão e ainda junto caminhamos nas trevas, envelhecemos e morremos, para um novo ciclo e um novo nascimento.
Trilhamos muito tempo no frio da morte até que sou despertado pelo seu choro, um choro triste e doído do que ficou pra trás, como o de Ariadne em Naxos. Eu a cobri de beijos... e envolvi o seu corpo com o meu.
E depois, de volta ao quarto onde tudo começara, me vi no espelho e com meus cabelos revoltos, lembrando mil serpentes, com um sorriso dionisíaco percebi a presença do deus de todos os transes e viagens, aquele que nos iniciou em seus mistérios, o sagrado Dionísio, nos mostrou que somos todos os deuses e também todo o universo.
Sorrindo olhei para ela, agora menina e desperta e disse: Você é a Deusa ela sorriu, como se o universo tivesse sido recriado e sorrindo me disse: somos um só, você se lembra?
Abracei-a novamente e com um beijo, nos fundimos novamente. Agora despertos e renascidos.


Amo-te mais do que poderiam dizer as palavras;
Mais que a vista, o espaço e a Liberdade.


Tu, Natureza és minha deusa.
Meus serviços a ti pertencem,
Porque deveria eu
Suportar a afronta do preconceito e permitir
Que a malicia dos povos me deserdassem.

(Rei Lear – Shakespeare)