segunda-feira, janeiro 16, 2006

Romance da Deusa ll




A viagem começou com uma sensação de frio intenso, mas ao invés de me encolher na tentativa de me aquecer, meu corpo foi se enrijecendo, esticando e perdendo os movimentos. Em pouco tempo, as juntas endurecidas pelo frio começaram a se separar, os pés das canelas, os joelhos das coxas, o braço do antebraço e tudo morria. Apenas a minha mente estava ativa e viva, sentindo frio no meu corpo desmembrado.
Minha mente racional, tinha a consciência que estávamos numa manhã, porem, a noção de tempo era vaga e escurecia rapidamente, como se um dia inteiro tivesse passado em alguns minutos
Ela estava ao meu lado e eu sentia o seu calor, abri meus olhos com dificuldade e movi lentamente a cabeça para olha-la, e a vi dormindo do meu lado. Sobre seu rosto um fino véu com meandros de fractais cristalinos e transparentes. Alem do véu seu rosto trigueiro estava dourado como uma mascara de sarcófago, mas não me assustei ela estava tranqüila e linda como uma deusa adormecida, e tudo que consegui dizer foi: Eu te amo.
Seus olhos se abriram brilhando como duas estrelas rutilantes na lua negra. Sua boca se abriu num sorriso e disse: eu te amo! E eu não sei se com a mente ou palavras eu pedi: Me abrace, está muito frio e meu corpo congelado está se perdendo e fui abraçado por ela, que entrelaçando suas pernas nas minhas, e colando seu corpo ao meu, juntava com seu calor e devolvia a vida às partes mutiladas de meu corpo. Porém, melhor que me sentir aquecido era olhar para o seu rosto dourado e luminoso, agora já totalmente desvelado, do alto de sua cabeça, nascia por entre os cabelos quase negros um crescente lunar que envolvia um disco solar. Como Lúcio Apuleio, ao vislumbrar aquela que tem muitos nomes, com os cabelos cheios de estrelas, só não me joguei ao chão, pois não havia mais solo nem paredes. Com o abraço de Isis, meu corpo pertencia ao universo e neste, nós flutuávamos. E neste estado numinoso, fui beijado pela Deusa. Com a boca ainda fria e seca recebi a língua quente e molhada da divindade, sorvendo sua saliva e calor renascia, para uma nova vida, agora sem os limites da morte e tendo pela frente a infinita eternidade.
Enquanto me alimentava do seu calor e umidade, entrava em êxtase. O que até a pouco havia sido agonia se tornou encantamento e deslumbramento. Rodávamos por entre galáxias, eu inebriado de delicia e assombro fechei meus olhos num desmaio de arrebatamento, sugando a vida avidamente como uma criança recém nascida. Embalados pelos movimentos do universo ficamos naquele beijo, já que não existia tempo, por séculos e milênios até que me percebi acariciado por muitas mãos e ainda antes que abrisse os olhos, ouvi a deusa me dizer que tinha muitos braços e como despertando de um sonho transcendente percebi que entrava em outro sonho.
A deusa agora tinha muitos braços, sua língua cresceu e eu preso num abraço múltiplo, percebi, que eu também tinha muitos braços, e acariciava seus longos e escuros cabelos, pegava nos seus seios e quadris ao mesmo tempo que a puxava para mim. Como duas aranhas nos amávamos , nos agarrando e apertando, até o ponto que nossos corpos se fundindo no abraço se interpenetravam. Eu por mais que quisesse falar só podia balbuciar: Você é a Deusa, você é a Deusa...
Ela repetia: somos um só somos um só... Nossos corpos se moldavam contendo o universo e ao mesmo tempo estávamos sendo incorporados pelo espaço infinito. Estávamos repletos de estrelas e galáxias corriam dela para mim e de mim para ela, com os vasos sanguíneos repletos de luz nossos corpos brilhavam e dançávamos e nos amávamos prenhe de astros e estrelas.
Dançamos em circulo com todos nossos braços e atraiamos todo o cosmo para nós, até nem mais uma estrela restou, éramos apenas nós deus e deusa. Naquele momento estávamos plenos e repletos de luz, e nada existia a não ser nós que éramos um só, até que também fomos perdendo as cores, esmaecendo até nos perdermos na escuridão e ainda junto caminhamos nas trevas, envelhecemos e morremos, para um novo ciclo e um novo nascimento.
Trilhamos muito tempo no frio da morte até que sou despertado pelo seu choro, um choro triste e doído do que ficou pra trás, como o de Ariadne em Naxos. Eu a cobri de beijos... e envolvi o seu corpo com o meu.
E depois, de volta ao quarto onde tudo começara, me vi no espelho e com meus cabelos revoltos, lembrando mil serpentes, com um sorriso dionisíaco percebi a presença do deus de todos os transes e viagens, aquele que nos iniciou em seus mistérios, o sagrado Dionísio, nos mostrou que somos todos os deuses e também todo o universo.
Sorrindo olhei para ela, agora menina e desperta e disse: Você é a Deusa ela sorriu, como se o universo tivesse sido recriado e sorrindo me disse: somos um só, você se lembra?
Abracei-a novamente e com um beijo, nos fundimos novamente. Agora despertos e renascidos.


Amo-te mais do que poderiam dizer as palavras;
Mais que a vista, o espaço e a Liberdade.


Tu, Natureza és minha deusa.
Meus serviços a ti pertencem,
Porque deveria eu
Suportar a afronta do preconceito e permitir
Que a malicia dos povos me deserdassem.

(Rei Lear – Shakespeare)

Um comentário:

Bruxa Horus disse...

Caramba!!!
Reverencias a isso e meu silencio... Nada posso acrescentar.