sábado, dezembro 23, 2006

A Deusa Dança



No passe tauromáquico, assim como no coito, há um movi­mento rumo á plenitude (aproximação do touro), seguido de um paroxismo (o touro precipitando‑se sobre a capa, roçando com seus chifres o ventre do homem de pés cravados); por fim, a separação dos dois atores, a divergência após o íntimo conta­to, a queda, a dilaceração. Quando, o touro respondendo bem e o homem sabendo trabalhá‑lo, um e outro se envolvem no labi­rinto móvel da série de passes contínuos (no curso da qual os dois adversários, não se deixando senão para imediatamente se reconfrontar, aparecem mais e mais cingidos um ao outro), cria­se uma vertigem que lembra de perto a vertigem erótica. Co­mo antes da crise final do ato amoroso, ficamos todos em sus­penso, na angústia de que tudo termine, no êxtase maravilhado de que tudo continue. A repetição, assim como nos gestos do coito, multiplica a cada vez a ebriedade: a cada momento, fica­mos um pouco mais ébrios de sentir que o prazer pôde ainda ir além do ápice de um segundo atrás. Como na vertigem material ‑ que pode ser angustiante ou deliciosa, como nos sonhos em que voamos, temos a sensação de estar em perigo: uma tal seqüência de acidentes provocados e evitados por um triz não po­derá prolongar‑se por muito tempo... ( Espelho da Taurimaquia - Michel Leiris - Cosac e Naify).

Isto se repete no Flamenco, a tensão, o momento de suspense em que a dureza dos gestos se mistura com a suavidade das mãos, como se o bandarilheiro ao invés do cruel arpão na ponta da enfeitada bandarilha levasse uma pomba em cada uma das mãos, mas o momento mantém a magia ancestral da luta do homem contra a fera, o Miura que existe em cada um de nós.
O controle e os passes são mantidos, a dureza do olhar fixo, a precisão milimétrica e o ritmo marcado pelos tacones mantêm o clima marcial e guerreiro do humano em luta contra uma força superior a sua, que representa a nossa luta contra nossa fera interior.
A contração do corpo e a força utilizada não são apenas uma dança é quase religião onde se perde o limite entre o sagrado e o profano, e assim como na Plaza de Toros, onde o homem domina a fúria da natureza se tornando deus, no flamenco a dançarina se torna deusa e o som de seus tacones é como se fosse o coração da terra acelerado e descompassado que repete o ritmo do coração da platéia que dispara ao ver a divindade que existe em toda mulher.
Mulher e deusa, sagrada e profana nos encanta e assusta com nossa incompreensão da Deusa Mãe, que nos dá vida e nos acaricia com suas mãos de leve brisa e asas de pomba, mas que pode nos esmagar com um terremoto causado por salto e ponta num sapateado frenético.



DONA
Guttemberg Guarabyra /Luis Carlos Sá

Dona desses traiçoeiros
sonhos sempre verdadeiros
dona desses animaisdo
na dos teus ideais
Pelas ruas onde andas,
onde mandas todos nós
somos sempre mensageiros
esperando tua voz
teus desejos uma ordem:
nada é nunca, nunca é não
porque tens essa certeza dentro do teu coração
Tã, tã, tã, batem na porta,
não precisa ver quem é
pra sentir a impaciência do teu pulso de mulher
um olhar me atira à cama,
um beijo me faz amar
não levanto,
não me escondo porque sei que és minha
dona...
Dona desses traiçoeiros
sonhos sempre verdadeiros
dona desses animais
dona dos teus ideais
Não há pedra em teu caminho,
não há ondas no teu mar
não há vento ou tempestade que te impeçam de voar
entre a cobra e o passarinho, entre a pomba e o gavião
ou teu ódio ou teu carinho nos carregam pela mão
É a moça da cantiga, a mulher da criação
umas vezes nossa amiga,
outras nossa perdição
o poder que nos levanta,
a força que nos faz cair
qual de nós inda não sabe que isso tudo te faz
dona.

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