quarta-feira, dezembro 28, 2011

A solidão.



Sempre temi a solidão e todos que me conhecem um pouco, sabem. Podem não saber a razão, podem não entender o que eu tanto temia, mas sempre souberam que a solidão sempre me deu pavor. Não se trata apenas ficar sozinho, pois por muitas vezes exercitava a solidão viajando, ou ficando trancado no quarto por dias.

O que me apavorava era a solidão compulsória, aquela que você não escolheu e em uma situação da qual você não pode se livrar... Vários fatores me levaram a isto e mesmo odiando estar só, preferi fechar todas as portas e janelas do labirinto e me sentar em meu trono no escuro centro do labirinto, rever minha vida inteira, reconhecer meus erros e não poder voltar no tempo. Portanto, tinha que apreender seguir em frente.

Outra das coisas apavorantes da solidão é não ter ninguém por perto para esconder a minha loucura, sim escondemos nossas loucuras particulares sob mascaras sociais e na solidão esta necessidade se esvai e corremos o risco de enlouquecer irremediavelmente.

Este período em que passei quase que 100% sozinho, causaram uma série de mudanças inclusive fisiológicas, passei a comer quando tinha fome e a dormir quando tinha sono, isto me levou a passar dias comendo apenas uma vez por dia, ter picos de sono de 3 horas ficando muito tempo sem dormir causando alguns estados alterados de consciência e despertando algumas áreas da mente que eu desconhecia, voltaram algumas coisas e maneiras que eu tinha esquecido completamente serem minhas. A intuição foi ampliada passei a perceber coisas que não percebia e meus instintos e sentidos ficaram mais aguçados como se um animal adormecido despertasse depois de longo sono. Fiquei mais sensorial e menos intelectual. Com isto a escrita foi bloqueada e para manter uma aparência de normalidade para os que me conheciam, passei a simplesmente compartilhar mensagens nas redes sociais, ao invés de escrevê-las como sempre fazia. Eventualmente durante a sonolência causada pela falta de sono surgiam algumas idéias e pensamentos que eu anotava de qualquer jeito, e depois eu as editava e publicava, mas isto era raro.

Em muitos dias as únicas palavras que eu dizia era: “Não, obrigado”, quando me perguntavam no mercado se queria o CPF na nota fiscal ou “ dois lucky’s vermelhos” para o dono do bar da esquina. Enquanto caminhava ou andava de bicicleta, coisa que faço todos os dias, geralmente não pensava em nada, preferindo curtir o calor do sol na pele, o vento levando os meus cabelos ou o frio da noite eriçando meus pelos.

Em casa, no meu labirinto por muitas vezes urrei de dor, por muitas vezes me senti esquecido pelo mundo, porque ao invés de seguir a corrente como todos fazem, nadei contra ela em busca dos meus princípios, fui à busca da minha fonte, minha nascente, busquei nos deuses meus arquétipos e os mitos, que nunca me abandonaram, e aprendi com eles. Percebi que cada momento da minha vida que me empurrou a este ponto, um mito me explicava o acontecido. Meus amigos, ou aqueles que eu julgava amigos, não entendiam a minha obsessão pela dor, em me estraçalhar em mil partes para poder depois me reconstruir, para eles era mais fácil mentir que nada havia ocorrido e viver o presente, mas o presente é uma falácia para justificar os próprios erros, enganar a si próprio. È no passado que devemos buscar o futuro, já que o presente é apenas um átimo de tempo, que em segundos já se torna passado.
Estou voltando de uma viagem prevista na apresentação deste blog escrita há oito anos, profeticamente escrita antes de tudo acontecer “Percorrendo os meandros viscerais até o âmago do ser humano, o inferno da mente. E dali retornar um novo ser, sem mais nenhum medo, vencendo as trevas da ignorância".
Volto triste, com uma tristeza absurda por finalmente ver as coisas como elas realmente são, sem véus sem nada que atrapalhe a visão, volto sem esperança e precisando de novos sonhos, mas volto inteiro e renovado.

segunda-feira, dezembro 26, 2011

Infandum Regina iubes renovarem dolorem.



Ordena-me Rainha que renove dores indizíveis.  Assim respondeu Enéas para a Rainha Dido, que lhe pede que conte o fim de Tróia. Sabendo que seria doloroso, ainda assim, Enéas se dispõe a contar, pois sabia que apesar de todas as suas perdas e dor, ele Sabia que não poderia esquecer. Enéas não era apenas uma testemunha, ele participara da defesa de Tróia e viveu seu fim, esquecer, seria acreditar que nada valeu à pena, que não aprendeu com o ocorrido, que muros inexpugnáveis, poderiam cai por astúcia e que um traidor valeria mais que os mil navios carregados de gregos. Aprendera muito com a lição que lhe rasgaram a pele.

Não, o que ele passou não podia ser esquecido, por maior dor que lembrar lhe trazia, ele tinha que contar, pois as dores só existem no passado.  E a Gloria de ter estado na defesa de Tróia, lutado ao lado de tantos guerreiros que caíram ao golpe do destino, não podia ser esquecida.
Ele precisava lembrar, pois mais que a dor o dilacerasse, Tróia nunca poderia ser esquecida e apagada da memória do mundo. Na Cidade de Ilion ele havia feito seu nome como guerreiro, lá criara sua Aretê, sua fama e sua honra. Não importava mais sua dor, pois esta já fora chorada demais e o que contaria era a glória de ter sobrevivido, mesmo estando do lado da morte por tantas vezes. Enéas respirou fundo secou a furtiva lagrima que ameaçava correr por seu rosto e finalmente falou a rainha de Cartago:

Se é de seu gosto, ouvir a nossa tragédia e saber sobre o fim de Tróia, esquecerei toda a dor e a repulsa das lembranças, esquecerei todo o horror que vivi, e farei a sua vontade, contarei tudo o que queria esquecer, pela glória dos que morreram.

É isto que acontece com todos os contadores de história, precisam esquecer suas dores, costurarem seus peitos dilacerados e relembrar com certo distanciamento, tudo o que viveu. Pois só seremos honestos com nossa história, se sufocamos a dor e a raiva e a escrevemos como simples narradores, não esquecendo nenhum detalhe, não mais com dor, nem usando nosso sangue como tinta.

Durante boa parte deste ano, pouco escrevi de novidade aqui nas paredes do Labirinto, reciclei textos antigos e inéditos, pois foi para mim um ano difícil e dolorido, não quis de forma alguma dividir minhas dores, já que eram intimas e faziam parte do meu destino. Agora passadas as lagrimas e com as dores aliviadas, volto a falar sobre do muito que passou pela minha cabeça e de algumas coisas que realmente aconteceram... 

Mas, tenham certeza nunca direi o que é real e o que foi só pensamento, pois quem escuta uma história se importa apenas com a história, a verdade nunca foi enredo.

quarta-feira, agosto 24, 2011

Jogando Xadrez com a Morte (Conto inacabado)



Há mais ou menos um ano ela apareceu por aqui, demorei um tempo pra perceber quem era. Se esgueirando pelas sombras da casa ela desaparecia por completo, deixando um cheiro suave de dama da noite. Aí passei a persegui-la, afinal, se ela estava zanzando pela minha casa não era sem motivo. Passei andar a noite pela casa, com todas as luzes apagadas para evitar as sombras e diferenças de luz, onde ela se escondia. Eu sabia que ela me evitava, nunca entrava no meu quarto, mas rondava entrava e por vezes se acomodava junto à cabeceira da minha mãe e se fundia no espaldar escuro. Brincamos de gato e rato, por algum tempo, até que um dia eu indo do quarto para a cozinha, andando no corredor escuro dei de cara com ela e nossos olhos se cruzaram, e aprendi que quando olhamos a Morte nos olhos ela se paralisa, ficando imóvel. Deve ser porque todos evitam olhá-la nos olhos. Me surpreendi, não por encará-la olhos nos olhos, mas porque seus olhos eram algo que eu nunca teria imaginado. Escuros e profundos eles me levaram ao tempo antes do Tempo, quando Nix reinava sobre o universo estendendo seu manto negro sobre tudo. A morte já existia antes da vida, e percebi isto nos lampejos cintilantes, que vinha do fundo da suas íris. Por um momento, envolvido por estes pensamentos sobre o principio dos tempos, fechei os olhos imaginando e retendo em mim esta miragem viagem e ela escapuliu.
Quando a encontrei novamente, não a encarei mais, e ao invés disso lhe perguntei:
 – O que Senhora faz na minha casa? O fio de Laquesis de alguém está para terminar?
– Não, mas sua mãe quer ir antes da hora, e ela quer isto com tanta intensidade, que nenhum Deus, pode fazer nada contra a vontade dela. Não estou aqui para levá-la, a menos que ela faça uma besteira, aí preciso estar por perto. Sempre que alguém caminha na linha entre a vida e a morte, uma de nós precisa estar por perto, para que não se rompa o equilíbrio.
Duas semanas depois desta conversa, um improvável câncer de seio, foi diagnosticado na minha mãe, que aos 81 anos tinha pouquíssimas possibilidades de desenvolver um tumor deste tipo. Correria, diagnósticos exames de corpo inteiro revelaram que só existia este tumor no seio, nenhuma metástase, nenhuma complicação.
Sem me estender mais neste ponto, digo para vocês que foi um mês de correrias na preparação da cirurgia, que ela não colaborava, passando os dias na cama, forçando os pulmões e o coração, o que dificultava uma anestesia para a cirurgia, mas enfim, com a ajuda do cardiologista, a deixamos pronta para a cirurgia em que o tumor foi removido, e foi só Isto, com a remoção do tumor, eliminou-se qualquer possibilidade de sequela.
Mas ainda assim, a incômoda presença, ainda passeava pela minha casa. E minha mãe, quando finalmente aceitou que não a estávamos enganando, escondendo um sombrio diagnóstico, foi novamente perdendo o brilho e a alegria e se refugiando no quarto, e passando os dias deitada, afinal ela agora sabia que isto forçava o coração.
Seu estado físico se deteriorava dia a dia e quando chegamos ao fim do ano parecia realmente o começo do fim. Sai de férias, mandando minha mãe para casa de um irmão, fui para a serra fugir do mundo e problemas. Quando regressei no dia 3 de janeiro, minha mãe foi devolvida num estado lastimável, não andava, quase não falava, e não segurava nenhuma de suas necessidades fisiológicas. Começou um período, que parei completamente o trabalho, a crise do meu casamento, chegou ao ponto máximo, tanto que antes do final do mês, eu estava separado e minha mãe catatônica na cama sem reconhecer nenhuma pessoa.
Nas primeiras noites, insones por falta da amada na cama e despertado por qualquer barulho no quarto ao lado, virei outro ser noturno que andava arrastando correntes pela casa. E muitas vezes cruzei com a emissária das moiras pela casa, fazendo apenas um cumprimento com a cabeça, que ela sempre correspondeu. Éramos dois fantasmas noturnos, ela que nunca dormia e eu sonolento por falta de sono, ela foi ficando de casa, por vezes a encontrei na área de serviço observando a lua ou mesmo na banheira, com água quente imaginária, se banhando em sonhos. E foi exatamente por isto, que voltamos a nos falar. Uma noite, após nos cruzamos várias vezes, perguntei:
     – Desculpe minha curiosidade, mas você já viveu como humana?
     – Não, porque a pergunta?
 – Reconheço em você algumas características humanas, como olhar para os céus a procura de algo, ou estar dentro de uma banheira vazia com vapores inexistentes.
 – Desde quando vocês passaram a existir que passo para recolher suas almas, e muitos de vocês na busca de alguns segundos a mais de vida insistem em conversar comigo, e contar seus planos que eu não deveria interromper. E aí fui apreendendo com vocês o que acreditam ser a vida. Isto foi por causa de Sísifo, que me enganou 3 vezes, aprendi a conhecer melhor as mentiras dos humanos, assim nunca mais nenhum de vocês me enganou.
 – E se eu encher uma banheira com água quente de verdade, você conseguiria aproveitar?
 – Filho de Dionísio, você sabe que nós deuses podemos ter corpo, além deste fluido e etéreo que você está vendo, e ainda a nossa real aparência, que vocês nunca realmente verão.
E eu fiz isto preparei uma banheira quente, com essência de dama da noite, algumas flores de gerânio e anilina azul clara para parecer a água da antiga Grécia, acendi algumas velas e a chamei para o banho. Ela se despiu dos panos escuros que envolviam o seu corpo, revelando um corpo com belas formas harmoniosas. Quando fui comentar alguma coisa, ela falou.
– Antes dos olímpicos, minha forma era outra, mas a partir dos ideais de Zeus, assumi esta forma, o que também é mais confortável, para aparecer aos moribundos. As outras formas grotescas que os humanos me retratam, são todas criadas pelo horror que vocês tem de mim. A inexorável, me chamam, a inflexível, dizem, como se nada pudesse me deter... Mas como você está vendo sou paciente, a quanto tempo espero aqui na sua casa?
 – Realmente a senhora tem me surpreendido. Mas me preocupa isto que a Senhora falou, que apenas os moribundos a vêem, será este o meu caso? Por que não a vi quando veio buscar aqui mesmo nesta casa o meu pai?
 – Não se preocupe, não é com você, nem com sua mãe se ela não se esforçasse tanto para morrer, ninguém sabe exatamente qual é o destino dela, mas eu sei que não é a hora dela agora, ela ainda tem mais alguns anos de vida se você interromper este processo. Eu lembro de você e de suas angustias, nas 48 horas que você passou no leito de morte do seu pai, quis algumas vezes levar ele antes da hora, enquanto seu interior gretasse, que era injusto tanto sofrimento, e pensou em afogá-lo com um travesseiro. Mas a inflexível é minha prima Laquesis que exige que eu só aja no momento que o fio acabe. E você me viu sim, me viu varias vezes, mas não tinha condição de compreender quem eu era e o que fazia aqui, no mesmo quarto onde está sua mãe. Você via minhas sombras, mas preferia, com medo, acreditar que era a sua falta de sono.
Enquanto falava se acomodava na banheira quente, e sorria de prazer, enquanto a água tépida envolvia seu corpo, respirava profundamente o cheiro da essência de dama da noite e das pétalas de gerânio. Fechava os olhos e parecia que tinha sonhos prazerosos. Mas de um momento para outro, seu rosto mudou e seus olhos se abriram com as orbitas vazias como uns buracos negros capazes de tragar galáxias. Sua voz mudou como se saísse das entranhas da terra:
– O que você está querendo comigo? Ninguém me trata bem! Sou totalmente odiada pelos humanos, os únicos animais que têm consciência da morte.
 – Desculpe – falei – mas nem sei o que faz aqui. É a mim que veio buscar? Qual meu interesse em te agradar? E continuei...
 – Que sabe a senhora sobre os sentimentos humanos, já que vive só, sem oferendas ou agrados por parte dos humanos, que passam a vida te evitando, o que conhece do amor? Como quer me entender ou adivinhar o meu intimo? Se não sabe nada do que estou passando. Eu que deveria perguntar o que faz aqui? Com tanta gente morrendo em agonia neste mundo, e a senhora perdendo tempo aqui na minha casa?
– Você não consegue entender direito o trabalho que faço..., o pré-morte também está incluído nas minhas atribuições... – disse ela. Não podemos mais chegar na hora da morte e assistir o fio das moiras sendo cortado, isto dava muita confusão, você humanos são muito teimosos, e quando vocês são pegos de surpresa tendem a acreditar que ainda estão vivos mesmo quando já estão apodrecendo. Você pode me fazer uma massagem nos meus pés.
Achei isto um abuso, mas querendo ver até onde chegaríamos, aceitei. Afinal, ela tomara a forma de uma mulher linda, embora que mesmo na água quente seus pés estavam gelados.
No começo de fevereiro, quando minha mãe atingia as profundezas da depressão, nos encontrávamos praticamente todos os dias, eu zanzando pela casa como um zumbi insone ela fazendo o seu trabalho. Cumprimentávamos-nos, as vezes batíamos um papo, mas não saia muito disso até o dia que ela me perguntou se tinha algum jogo em casa e dentro dos que tinha, ela me perguntou se eu jogava xadrez.
     – Joguei muito na infância e adolescência, mas faz tempo que não jogo, disse eu.
 – Eu também não sou grande coisa, mas vamos nos distrair um pouco, já que ambos passamos a noite em claro, respondeu ela.
Na verdade ela realmente não era grande coisa, dava a impressão que ela ficava divagando ao invés de planejar suas jogadas. Ganhei fácil a primeira partida. E a partir daí, todas as noites de fevereiro, jogamos pelo menos 3 horas de xadrez por noite, comigo ganhando a maior parte do tempo, e tripudiando a adversária. Nos divertíamos com isto, até o dia que comecei a perder...
Ao invés dela, devolver minhas brincadeiras, ela ficou séria e me disse:
    Olha estamos chegando a um ponto critico sua mãe desistiu da vida e neste ritmo ela não vai durar mais 30 dias. No dia seguinte comecei o período mais critico da minha vida. Minha mãe parou de comer e o que conseguíamos fazer com que ela engolisse, ela devolvia, os médicos diziam que não havia mais o que fazer era só esperar... O difícil era esperar impassível o fim. Saber que ela estava se matando, ou a depressão a estava matando, de qualquer forma seus dias estavam contados, mesmo sendo contra a vontade das moiras
Nesta noite, não quis jogar, e falei com a minha parceira noturna, hoje não, quero ficar quieto, mas ela insistiu, vamos sim e falamos durante o jogo.
Ela jogou com as brancas e deu uma saída classica.
(quando cheguei aqui percebi que não devia ser um conto, mas tinha a sunto para um livro inteiro que já está sendo escrito)

quarta-feira, julho 27, 2011

Hecáte


 Um grito foi tudo que ficou no ar. Um grito que a menina que colhia jacintos, deixou no ar como um aviso a sua mãe de que ela já não caminhava na luz, alguns disseram que este grito foi de terror e medo ao ver-se arrebatada pelo auriga de uma escura quadriga de corcéis negros, outros que o grito foi de horror por se ver refletida nas negras pupilas cercadas pelas Íris amarelas de seu captor, e ao ver-se assombrou-se por perceber que ela a partir daquele momento este seria o seu nome, Core, a menina dos olhos do senhor dos subterrâneos.

A loura Deméter, ao ouvir o grito o reconheceu como vindo de sua filha, mas não conseguiu perceber de que direção vinha, o que aumentou seu desespero, rasgou suas roupas e as lançou aos ventos e por onde Boreas, Zéfiro, Euro e Notos, por onde carregavam os restos da roupas da poderosa deusa, levavam a dor de uma mãe ferida, a dor de Gaia e Rea, que antes viam seus filhos aprisionados ou comidos pelo pai, a dor que revertia o cio da terra, que fazia a vegetação e as espigas morrerem e a crosta da terra endurecer-se, para que não mais as sementes a penetrem e arrebentem. A dor da mãe transformou a terra em deserto de onde a vegetação fenecia e secava. Deméter desesperada correu o mundo perguntando por sua filha e ninguém sabia onde ela poderia estar. A deusa dos dourados cabelos de trigo, vestiu se de luto azul, cobriu a cabeça e decidiu que toda a flora morreria, por sua ferida, pela sua filha desaparecida. Vestiu se de azul, caminhou nove dias e nove noites, indagou aos pássaros, aos animais e aos elementos, e nenhuma pista de sua menina. Ao Olimpo, apenas o choro nos mortais chegava, nenhuma fumaça de sacrifício, nem o cheiro da gordura, e tampouco os cânticos ou louvores, apenas as lamentações e a raiva dos humanos por tão repentino castigo, a morte da terra e de toda a criação.

Até então ninguém sabia o motivo de tanta dor, pois a boca da loura dona das espigas e do pão se fechara, e dela nem mais nenhum gemido se ouvira. De seus olhos nenhuma lagrima rolara, nem tristeza, nem revolta, apenas a determinação de que nenhum imortal recebesse nada, nenhuma oferta dos humanos, enquanto a alegria não voltasse aos seus olhos, enquanto Perséfone não voltasse a luz.

Os olímpicos se desesperavam, pois nem mesmo Zeus tinha o poder de destruir assim todas as graças de Gaia, se olhavam assustados. Que poder antigo havia sido desperto para que a Gaia ressecasse seu ventre como se ainda estivesse envolta por Urano,e  nenhum de seus filhos pudessem ter vindo a luz, e a terra morria como se dela nunca nada tivesse brotado.

Apenas uma filha dos titãs, que do submundo havia visto os ínferos se abrirem, e Hades, o invisível, sair e voltar rapidamente com sua presa e a terra novamente fechar-se silenciando o grito, e deixando penetrar a vida na terra dos mortos. Isto iniciaria uma nova era e um novo regime ao mundo, mas se ela não agisse logo o Orco receberia todos os habitantes da superfície, e nenhum reino ainda existiria na superfície da terra, e Gaia seria apenas, a cobertura do imenso reino de Dite. Hécate correu a Hélios o titã que tudo via, e pediu que ele mostrasse onde Démeter estaria com sua dor. Porem antes foi saber de Perséfone se ela sofria ou estava feliz com seu cativeiro.

Correu para a superfície e buscou Iaco, filho de Dionisio com Aura, conhecido como aquele que traz a felicidade, pois sendo salvo da mãe que pisoteava seu irmão gêmeo, por Ártemis, que engendrara o plano de Dionisio, estuprar Aura. uma de suas ninfas que a ofendera, se dizendo mais desejável que a senhora das feras e infalível flecheira. Quando esta guardou Iaco sob suas vestes, o recém nascido, ávido pela vida, grudou sua boca nos seus seios de virgem de Ártemis até que deles jorrasse o leite que o alimentou. Levado por ela a Atena, pois Aura, corria possessa pela floresta, atingindo e matando todos os animais com sua lança ou flechas. Novamente a fome de Iaco, falou mais alto, e também tirou leite dos seios pequenos e fortes da deusa da sabedoria. Assim amamentado pelo leite de duas virgens que julgavam isto impossível acontecer, darem a vida e o alimento para este pequeno deus, que por esta alegria dada a elas se tornou conhecido por trazer a felicidade.

Carregando Iaco pelas mãos tomou a forma de Baubó, um feiticeira, uma das muitas que assumia quando na superfície e correndo para a pedra onde Deméter estava imobilizada após os nove dias de busca, Hécate contou para ela o destino de sua filha, que estava feliz pelo seu novo reino e com a possibilidade de existir um novo regime, pela vida ter entrado no reino dos mortos, fazendo que a partir de então os humanos renascessem da morte, assumindo novos corpos, e buscando o conhecimento em cada vida ao invés de apodrecerem, e se dissolverem, no Hades. Apenas uma coisa agoniava Perséfone, a saudade de sua mãe Deméter, que a fazia sofrer e chorar.

A deusa dos cereais não moveu um músculo de rua face fechada, numa mascara de dor, como se fosse de pedra, moveu apenas os olhos quando soube que sua filha sofria de saudade, assim ela não daria este novo regime de morte para os humanos, eles que morressem todos de fome na terra e que seus corpos e almas se dissolvessem nas profundezas do tártaro.  

Para ela, a única coisa que queria era sua filha voltasse à luz ainda que para isto, todos os humanos morressem, e que os deuses sem culto se revoltassem contra aquele que roubou sua filha e contra aquele que permitiu que isto acontecesse, pois ainda que estes fossem crônidas como ela, apenas Deméter podia invocar o poder de Rea a mãe de todos ou de Gaia a mãe de toda criação e por nada abdicaria de seus direito de deusa e mãe, nada a tiraria dali, ainda que aquela filha dos titãs, falasse horas da regeneração das almas, que com Perséfone o reino invisível seria apenas um lugar de passagem, para a psique dos humanos, nada, mas nada mesmo a tiraria daquela pedra até que o solo se abrisse e sua filha fosse devolvida.

Porem as artimanhas da rainha das feiticeiras, não estava apenas no seu poder, de transformar a natureza e a vontade dos deuses e dos humanos, pois quando mais a dupla mãe, a De Meter, fechava sua mente para os feitiços , quando mais se endurecia como pedra, para que ela não a atingisse mais estaria exposta para a armadilha que esta havia lhe preparado, pois como filha das antigas gerações sabia que só uma coisa reverteria a situação do mundo, apenas um gesto poderia mudar tudo.

Hécate era a dona dos caminhos, dominava as encruzilhadas, sabia de todos os caminhos que os humanos precisariam passar para chegar ao seu destino, sem a dupla via da natureza humana, sendo carne e sendo espirito, nunca estes cumpririam os desígnios de Gaia. A velha bruxa sabia, que novos alimentos deveriam chegar aos humanos, a caça seria escassa, a agricultura teria que se desenvolver, os humanos deviam aprender com a reencarnação que o trigo poderia ser novamente enterrado, e que nasceria novamente, que suas sementes amassadas se tornariam o pão alimento do corpo, que Dionisio, daria aos homens o alimento do espirito, o vinho e o transe, que libertaria a mente  que desenvolveria  intrincados raciocínios. Todo o progresso humano dependeria do ato que ela faria agora, o inesperado que quebraria a resistência de Deméter, e que a cada ano Perséfone, descesse ao submundo, e que neste período, a terra morresse com ela, para que assim descansasse e se preparasse para o próximo ciclo, e que com a volta de Perséfone a vida brotaria do solo empurrada por ela, Hécate e o equilíbrio entre a superfície e a o subterrâneo ocorresse, como já havia acontecido com o céu e a terra, e entre a terra e o mar. Para que tudo isto ocorresse, Hécate/Baubó precisava criar algo totalmente novo, algo que quebrasse a resistência e que restabelecesse a ordem e foi o que fez.
Levantando a Roupa exibiu sua genitália, pintada como se fosse um rosto e os grandes lábios a Boca, que cantava musicas obscenas.



Iaco que estava mudo de terror pelo senho fechado de sua bisavó Deméter, surpreendido gargalhou, surpreendida com o riso infantil, A grande deusa, deixou escapar um sorriso, que observada por Iaco que agora ria dela Deméter, as gargalhadas, não resistiu e também gargalhou.
Ao som desta gargalhada a terra voltou a sorrir e floresceu e a partir daquele momento, o mundo mudou, e os mortos puderam voltar à vida.

segunda-feira, julho 25, 2011

A Adega


(Creio que este foi o meu primeiro conto. Escrito há muito, e burilado com o tempo.)
 
O Senhor Hunterman tinha uma casa, grande e espaçosa, ele se preocupava em organizar sua vida para o futuro. Pensava muito na sua velhice. Organizou uma biblioteca, com tudo o que já tinha lido, e comprava livros que ele gostaria de ler mais tarde, quando chegasse a idade. Em sua discoteca, com um grande volume de discos, juntava músicas que foram temas de todas as partes da sua vida. Assim como, organizou durante anos uma filmoteca, escolhendo todos os filmes que gostaria um dia de rever.

O Sr. Hunterman esperava um dia, poder sentar-se no escritório, para na velhice escrever seus livros, onde contasse sua vida e todas as coisas que lhe aconteceram, sua vida havia sido bastante rica, por isto ele capturava cada fragmento de vida ou emoção, cenas de filmes, trechos de musica, poesias e romances.

Ele levava a sério, cada prato que comia e lhe chamava a atenção em restaurantes ou viagens, ele buscava recriar em sua cozinha, buscando temperos exóticos e raras especiarias e ingredientes originais. Muitas vezes a sua casa inteira recendia, aromas maravilhosos que vinham da sua cozinha.

Para completar ele tinha a adega, onde ele guardava os vinhos que havia tomado na vida, densos, encorpados, frutados, suaves. Cada sabor, cada travo relembrava, não o ano da sua safra, mas sim o momento e a companhia com quem foram divididos. Há quem diga, que o Senhor Hunterman, afirmava poder lembrar dos beijos, a partir do sabor dos vinhos e dos pratos que havia comido com uma de suas amadas.

Porém, o que praticamente ninguém sabia é que ele, guardava mais na sua adega que qualquer um podia imaginar, lá no fundo, num canto escuro da adega, existia uma pequena porta sempre trancada com 3 cadeados, poucos a viam, e os que olhavam para ela, acreditavam que fosse um pequeno quarto de despejo, um depósito de coisas inúteis e antigas. Apenas uma mulher, uma de suas últimas namoradas, com uma imaginação acima da média, acreditou que ali era o esconderijo do barba azul, onde ele guardava, as cabeças mumificadas de suas antigas amantes, presas pelos cabelos em ganchos na parede, o seus corpos enterrados em covas rasas logo abaixo do piso.
Tanto esta mulher fez e ameaçou, desde ir embora e nunca mais voltar, como de chamar a polícia, pois sentira pelo vão da porta o cheiro de carne putrefata, que ele finalmente abriu a porta.

Assustada e ressabiada por suas próprias fantasias e já imaginando sua cabeça pendurada por seus longos cabelos loiros, ela entrou, pé ante pé. Para sua surpresa encontrou outra adega, mais limpa, menos empoeirada, melhor organizada, com prateleiras circulares, e uma poltrona e um pequeno aparador ao lado dela. De estranho mesmo apenas as garrafas, com um líquido transparente como água e estranhos rótulos escritos a mão , nomes de mulheres e datas em uma caligrafia caprichada. Todas as garrafas organizadas por ordem alfabética em cada família, colocada  por ordem de datas. E na parte inferior do rótulo, estava escrita alguma referência aos momentos. Cada uma das garrafas estava bem arrolhada e depois coberta de parafina e por fim lacrada, como se o liquido que estava guardado pudesse escapar se volatilizando pelo ar como éter. Satisfeita a sua curiosidade a mulher loira, não se preocupou muito com mais uma das esquisitices do Senhor Hunterman, tanto, que nem percebeu que havia já algumas garrafas marcadas com seu nome, Odete, escrita com caligrafia caprichada.

Odete ficou tão frustrada em suas fantasias, que não percebeu que no chão desta segunda adega, bem no centro,  próximo a poltrona com o aparador havia um alçapão. Mas todo mistério tinha se quebrado, que havia de oculto ou de interessante em uma adega dentro de outra? Incrível, mas sem a aura da barba azul, ou do feiticeiro poderoso e misterioso, o Sr. Hunterman era uma pessoa comum. Findo os mistérios, ele era apenas, um homem interessante, e que fazia sexo gostoso. Mas isto existiam vários e possivelmente muitos com mais dinheiro que ele. Assim, logo após a descoberta, começaram os desentendimentos, e pouco mais de um mês depois estavam separados. Porém, por mais que o tempo passasse crescia nela uma impressão que havia perdido o homem da sua vida, não sabia dizer por que, mas sentia como se parte de si, das suas lembranças ou da sua vida tivesse ficado com o Sr Hunterman. Para ele a vida continuou normal, depois da loira veio, a morena, a mulata clara, a ruiva, outra morena, a cada uma, ele buscava o seu par, acreditava que tinha encontrado a mulher da sua vida. Ele amou todas as mulheres que haviam passado por sua vida e de cada uma delas guardou momentos, sentimentos e um pouco da alma delas, nada que fizesse falta, apenas aquela parte que realmente amara ele. Pois, por mais que acreditasse que havia encontrado o amor que duraria por uma vida, sabia que seu destino, na velhice seria a solidão.

Por muitas vezes acreditou nas mulheres, acreditou que o amor nunca se acabaria, acreditou que houvesse o que houvesse, elas  honrariam seus juramentos e seus pactos. Para estas ele tinha o maior numero de garrafas na sua segunda adega, guardava todos os momentos felizes cada gozo, cada alegria, sorrisos cheios de promessas, palavras sussurradas ou gritadas dos momentos de amor. Praticamente toda noite ele descia para o porão da adega dentro da adega e com seus encantos e poderes insuspeitáveis, ele destilava junto com a água, todos estes momentos, os eternizando para que quando chegassem os dias de solidão.

Assim ele encararia numa boa ficar sozinho, teria, seus discos, seus livros, filmes e  lembranças felizes que ele podia beber tanto tranqüilamente, revivendo os momentos felizes ou com sofreguidão, quando o peito dói forte. Muitas vezes entre uma paixão ou outra, nos períodos de entre-safras de amores, era na sua adega que ele se refugiava. Passava por todo um ritual, cozinhava enquanto escutava musicas da época, comia acompanhado de um vinho que haviam tomado juntos, depois descia as escadas vagarosamente, carregando a garrafa do vinho. Abria a porta com cuidado, como se algumas daquelas emoções pudessem escapar e se perder pela casa, fugindo do controle e o assombrasse durante as noites frias. Entrava fecha a porta e naquele silencio subterrâneo dos túmulos, bebia pelo gargalo, os últimos goles do vinho do jantar, enquanto escolhia o momento que queria reviver. Cuidadoso, relia os rótulos, garrafa por garrafa daquela safra, escolhia o momento que necessitava, aquele que supriria a sua carência de paixão, corpo e sentidos; às vezes só pequenas caricias lhe bastavam, noutras queria tudo, com chamas e o calor que tudo consumia. Por isto a escolha criteriosa, para não, gastar nenhum destes momentos gloriosos, ou buscar um momento que não satisfaça plenamente o desejo, e se faça necessário abrir mais uma garrafa naquele dia.

Escolhida a garrafa, sentava na poltrona, rompia o lacre, retirava com cuidado a parafina, e delicadamente penetrava a rolha com a espiral de aço, e sacava a rolha. Deixava a garrafa aberta para que o pouco de alma que existia na garrafa tomasse o ambiente. Bebia as ultimas gotas da garrafa de vinho, enquanto as lembranças se espalhavam. Respirando o passado, ele colocava um pouco do conteúdo no copo, cheirava sentia o buquê entrava no tempo das lembranças, e só então bebia o primeiro gole. Ao contato do liquido com a boca, o que era lembranças e imaginação tomava corpo, e as sensações se tornavam físicas, todos os sentidos eram despertos, as palavras e vozes retornavam no timbres exatos e penetravam vivas pelos ouvidos, indo diretamente para o cérebro, trazendo para o presente, aquilo que já se tornara passado. Com as vozes vinham os aromas, os odores da respiração, o perfume, o cheiro dos cabelos, do corpo. Vinham também os sabores da saliva, do suor e em seguida das sensações táteis. E finalmente a visão. As lembranças tomavam corpo, e se transformam em realidade, como se o tempo voltasse a trás ou como se nunca houvesse passado. Naquele momento, depois do primeiro gole, o tempo deixava de existir, toda a eternidade era apenas aquele momento que se repetia, repetia até que o Sr. Hunterman perdesse os sentidos e acordasse na manhã seguinte como se tudo tivesse ocorrido noite anterior. Quando abria os olhos, percebia que tudo fora efeito da garrafa da noite anterior, aí ele recolhia o copo, as garrafas, fechava cuidadosamente a três fechaduras da porta, e subia lentamente as escadas, preocupado se seu estoque era suficiente ou se precisava de mais almas e lembranças...