segunda-feira, julho 25, 2011

A Adega


(Creio que este foi o meu primeiro conto. Escrito há muito, e burilado com o tempo.)
 
O Senhor Hunterman tinha uma casa, grande e espaçosa, ele se preocupava em organizar sua vida para o futuro. Pensava muito na sua velhice. Organizou uma biblioteca, com tudo o que já tinha lido, e comprava livros que ele gostaria de ler mais tarde, quando chegasse a idade. Em sua discoteca, com um grande volume de discos, juntava músicas que foram temas de todas as partes da sua vida. Assim como, organizou durante anos uma filmoteca, escolhendo todos os filmes que gostaria um dia de rever.

O Sr. Hunterman esperava um dia, poder sentar-se no escritório, para na velhice escrever seus livros, onde contasse sua vida e todas as coisas que lhe aconteceram, sua vida havia sido bastante rica, por isto ele capturava cada fragmento de vida ou emoção, cenas de filmes, trechos de musica, poesias e romances.

Ele levava a sério, cada prato que comia e lhe chamava a atenção em restaurantes ou viagens, ele buscava recriar em sua cozinha, buscando temperos exóticos e raras especiarias e ingredientes originais. Muitas vezes a sua casa inteira recendia, aromas maravilhosos que vinham da sua cozinha.

Para completar ele tinha a adega, onde ele guardava os vinhos que havia tomado na vida, densos, encorpados, frutados, suaves. Cada sabor, cada travo relembrava, não o ano da sua safra, mas sim o momento e a companhia com quem foram divididos. Há quem diga, que o Senhor Hunterman, afirmava poder lembrar dos beijos, a partir do sabor dos vinhos e dos pratos que havia comido com uma de suas amadas.

Porém, o que praticamente ninguém sabia é que ele, guardava mais na sua adega que qualquer um podia imaginar, lá no fundo, num canto escuro da adega, existia uma pequena porta sempre trancada com 3 cadeados, poucos a viam, e os que olhavam para ela, acreditavam que fosse um pequeno quarto de despejo, um depósito de coisas inúteis e antigas. Apenas uma mulher, uma de suas últimas namoradas, com uma imaginação acima da média, acreditou que ali era o esconderijo do barba azul, onde ele guardava, as cabeças mumificadas de suas antigas amantes, presas pelos cabelos em ganchos na parede, o seus corpos enterrados em covas rasas logo abaixo do piso.
Tanto esta mulher fez e ameaçou, desde ir embora e nunca mais voltar, como de chamar a polícia, pois sentira pelo vão da porta o cheiro de carne putrefata, que ele finalmente abriu a porta.

Assustada e ressabiada por suas próprias fantasias e já imaginando sua cabeça pendurada por seus longos cabelos loiros, ela entrou, pé ante pé. Para sua surpresa encontrou outra adega, mais limpa, menos empoeirada, melhor organizada, com prateleiras circulares, e uma poltrona e um pequeno aparador ao lado dela. De estranho mesmo apenas as garrafas, com um líquido transparente como água e estranhos rótulos escritos a mão , nomes de mulheres e datas em uma caligrafia caprichada. Todas as garrafas organizadas por ordem alfabética em cada família, colocada  por ordem de datas. E na parte inferior do rótulo, estava escrita alguma referência aos momentos. Cada uma das garrafas estava bem arrolhada e depois coberta de parafina e por fim lacrada, como se o liquido que estava guardado pudesse escapar se volatilizando pelo ar como éter. Satisfeita a sua curiosidade a mulher loira, não se preocupou muito com mais uma das esquisitices do Senhor Hunterman, tanto, que nem percebeu que havia já algumas garrafas marcadas com seu nome, Odete, escrita com caligrafia caprichada.

Odete ficou tão frustrada em suas fantasias, que não percebeu que no chão desta segunda adega, bem no centro,  próximo a poltrona com o aparador havia um alçapão. Mas todo mistério tinha se quebrado, que havia de oculto ou de interessante em uma adega dentro de outra? Incrível, mas sem a aura da barba azul, ou do feiticeiro poderoso e misterioso, o Sr. Hunterman era uma pessoa comum. Findo os mistérios, ele era apenas, um homem interessante, e que fazia sexo gostoso. Mas isto existiam vários e possivelmente muitos com mais dinheiro que ele. Assim, logo após a descoberta, começaram os desentendimentos, e pouco mais de um mês depois estavam separados. Porém, por mais que o tempo passasse crescia nela uma impressão que havia perdido o homem da sua vida, não sabia dizer por que, mas sentia como se parte de si, das suas lembranças ou da sua vida tivesse ficado com o Sr Hunterman. Para ele a vida continuou normal, depois da loira veio, a morena, a mulata clara, a ruiva, outra morena, a cada uma, ele buscava o seu par, acreditava que tinha encontrado a mulher da sua vida. Ele amou todas as mulheres que haviam passado por sua vida e de cada uma delas guardou momentos, sentimentos e um pouco da alma delas, nada que fizesse falta, apenas aquela parte que realmente amara ele. Pois, por mais que acreditasse que havia encontrado o amor que duraria por uma vida, sabia que seu destino, na velhice seria a solidão.

Por muitas vezes acreditou nas mulheres, acreditou que o amor nunca se acabaria, acreditou que houvesse o que houvesse, elas  honrariam seus juramentos e seus pactos. Para estas ele tinha o maior numero de garrafas na sua segunda adega, guardava todos os momentos felizes cada gozo, cada alegria, sorrisos cheios de promessas, palavras sussurradas ou gritadas dos momentos de amor. Praticamente toda noite ele descia para o porão da adega dentro da adega e com seus encantos e poderes insuspeitáveis, ele destilava junto com a água, todos estes momentos, os eternizando para que quando chegassem os dias de solidão.

Assim ele encararia numa boa ficar sozinho, teria, seus discos, seus livros, filmes e  lembranças felizes que ele podia beber tanto tranqüilamente, revivendo os momentos felizes ou com sofreguidão, quando o peito dói forte. Muitas vezes entre uma paixão ou outra, nos períodos de entre-safras de amores, era na sua adega que ele se refugiava. Passava por todo um ritual, cozinhava enquanto escutava musicas da época, comia acompanhado de um vinho que haviam tomado juntos, depois descia as escadas vagarosamente, carregando a garrafa do vinho. Abria a porta com cuidado, como se algumas daquelas emoções pudessem escapar e se perder pela casa, fugindo do controle e o assombrasse durante as noites frias. Entrava fecha a porta e naquele silencio subterrâneo dos túmulos, bebia pelo gargalo, os últimos goles do vinho do jantar, enquanto escolhia o momento que queria reviver. Cuidadoso, relia os rótulos, garrafa por garrafa daquela safra, escolhia o momento que necessitava, aquele que supriria a sua carência de paixão, corpo e sentidos; às vezes só pequenas caricias lhe bastavam, noutras queria tudo, com chamas e o calor que tudo consumia. Por isto a escolha criteriosa, para não, gastar nenhum destes momentos gloriosos, ou buscar um momento que não satisfaça plenamente o desejo, e se faça necessário abrir mais uma garrafa naquele dia.

Escolhida a garrafa, sentava na poltrona, rompia o lacre, retirava com cuidado a parafina, e delicadamente penetrava a rolha com a espiral de aço, e sacava a rolha. Deixava a garrafa aberta para que o pouco de alma que existia na garrafa tomasse o ambiente. Bebia as ultimas gotas da garrafa de vinho, enquanto as lembranças se espalhavam. Respirando o passado, ele colocava um pouco do conteúdo no copo, cheirava sentia o buquê entrava no tempo das lembranças, e só então bebia o primeiro gole. Ao contato do liquido com a boca, o que era lembranças e imaginação tomava corpo, e as sensações se tornavam físicas, todos os sentidos eram despertos, as palavras e vozes retornavam no timbres exatos e penetravam vivas pelos ouvidos, indo diretamente para o cérebro, trazendo para o presente, aquilo que já se tornara passado. Com as vozes vinham os aromas, os odores da respiração, o perfume, o cheiro dos cabelos, do corpo. Vinham também os sabores da saliva, do suor e em seguida das sensações táteis. E finalmente a visão. As lembranças tomavam corpo, e se transformam em realidade, como se o tempo voltasse a trás ou como se nunca houvesse passado. Naquele momento, depois do primeiro gole, o tempo deixava de existir, toda a eternidade era apenas aquele momento que se repetia, repetia até que o Sr. Hunterman perdesse os sentidos e acordasse na manhã seguinte como se tudo tivesse ocorrido noite anterior. Quando abria os olhos, percebia que tudo fora efeito da garrafa da noite anterior, aí ele recolhia o copo, as garrafas, fechava cuidadosamente a três fechaduras da porta, e subia lentamente as escadas, preocupado se seu estoque era suficiente ou se precisava de mais almas e lembranças...

3 comentários:

Zoe de Camaris disse...

Muito bom o conto, Gwy. Contexto e estrutura. Parabéns!

Cezar Drake disse...

este, demorou muitos anos pra ficar pronto... enfim... deu vontade de publicar

Casa do Intento disse...

Incrível..