Percorrendo os meandros viscerais até o âmago do ser humano, o inferno da mente. E dali retornar um novo ser, sem mais nenhum medo, vencendo as trevas da ignorância.
quarta-feira, agosto 24, 2011
Jogando Xadrez com a Morte (Conto inacabado)
Há mais ou menos um ano ela apareceu por aqui, demorei um tempo pra perceber quem era. Se esgueirando pelas sombras da casa ela desaparecia por completo, deixando um cheiro suave de dama da noite. Aí passei a persegui-la, afinal, se ela estava zanzando pela minha casa não era sem motivo. Passei andar a noite pela casa, com todas as luzes apagadas para evitar as sombras e diferenças de luz, onde ela se escondia. Eu sabia que ela me evitava, nunca entrava no meu quarto, mas rondava entrava e por vezes se acomodava junto à cabeceira da minha mãe e se fundia no espaldar escuro. Brincamos de gato e rato, por algum tempo, até que um dia eu indo do quarto para a cozinha, andando no corredor escuro dei de cara com ela e nossos olhos se cruzaram, e aprendi que quando olhamos a Morte nos olhos ela se paralisa, ficando imóvel. Deve ser porque todos evitam olhá-la nos olhos. Me surpreendi, não por encará-la olhos nos olhos, mas porque seus olhos eram algo que eu nunca teria imaginado. Escuros e profundos eles me levaram ao tempo antes do Tempo, quando Nix reinava sobre o universo estendendo seu manto negro sobre tudo. A morte já existia antes da vida, e percebi isto nos lampejos cintilantes, que vinha do fundo da suas íris. Por um momento, envolvido por estes pensamentos sobre o principio dos tempos, fechei os olhos imaginando e retendo em mim esta miragem viagem e ela escapuliu.
Quando a encontrei novamente, não a encarei mais, e ao invés disso lhe perguntei:
– O que Senhora faz na minha casa? O fio de Laquesis de alguém está para terminar?
– Não, mas sua mãe quer ir antes da hora, e ela quer isto com tanta intensidade, que nenhum Deus, pode fazer nada contra a vontade dela. Não estou aqui para levá-la, a menos que ela faça uma besteira, aí preciso estar por perto. Sempre que alguém caminha na linha entre a vida e a morte, uma de nós precisa estar por perto, para que não se rompa o equilíbrio.
Duas semanas depois desta conversa, um improvável câncer de seio, foi diagnosticado na minha mãe, que aos 81 anos tinha pouquíssimas possibilidades de desenvolver um tumor deste tipo. Correria, diagnósticos exames de corpo inteiro revelaram que só existia este tumor no seio, nenhuma metástase, nenhuma complicação.
Sem me estender mais neste ponto, digo para vocês que foi um mês de correrias na preparação da cirurgia, que ela não colaborava, passando os dias na cama, forçando os pulmões e o coração, o que dificultava uma anestesia para a cirurgia, mas enfim, com a ajuda do cardiologista, a deixamos pronta para a cirurgia em que o tumor foi removido, e foi só Isto, com a remoção do tumor, eliminou-se qualquer possibilidade de sequela.
Mas ainda assim, a incômoda presença, ainda passeava pela minha casa. E minha mãe, quando finalmente aceitou que não a estávamos enganando, escondendo um sombrio diagnóstico, foi novamente perdendo o brilho e a alegria e se refugiando no quarto, e passando os dias deitada, afinal ela agora sabia que isto forçava o coração.
Seu estado físico se deteriorava dia a dia e quando chegamos ao fim do ano parecia realmente o começo do fim. Sai de férias, mandando minha mãe para casa de um irmão, fui para a serra fugir do mundo e problemas. Quando regressei no dia 3 de janeiro, minha mãe foi devolvida num estado lastimável, não andava, quase não falava, e não segurava nenhuma de suas necessidades fisiológicas. Começou um período, que parei completamente o trabalho, a crise do meu casamento, chegou ao ponto máximo, tanto que antes do final do mês, eu estava separado e minha mãe catatônica na cama sem reconhecer nenhuma pessoa.
Nas primeiras noites, insones por falta da amada na cama e despertado por qualquer barulho no quarto ao lado, virei outro ser noturno que andava arrastando correntes pela casa. E muitas vezes cruzei com a emissária das moiras pela casa, fazendo apenas um cumprimento com a cabeça, que ela sempre correspondeu. Éramos dois fantasmas noturnos, ela que nunca dormia e eu sonolento por falta de sono, ela foi ficando de casa, por vezes a encontrei na área de serviço observando a lua ou mesmo na banheira, com água quente imaginária, se banhando em sonhos. E foi exatamente por isto, que voltamos a nos falar. Uma noite, após nos cruzamos várias vezes, perguntei:
– Desculpe minha curiosidade, mas você já viveu como humana?
– Não, porque a pergunta?
– Reconheço em você algumas características humanas, como olhar para os céus a procura de algo, ou estar dentro de uma banheira vazia com vapores inexistentes.
– Desde quando vocês passaram a existir que passo para recolher suas almas, e muitos de vocês na busca de alguns segundos a mais de vida insistem em conversar comigo, e contar seus planos que eu não deveria interromper. E aí fui apreendendo com vocês o que acreditam ser a vida. Isto foi por causa de Sísifo, que me enganou 3 vezes, aprendi a conhecer melhor as mentiras dos humanos, assim nunca mais nenhum de vocês me enganou.
– E se eu encher uma banheira com água quente de verdade, você conseguiria aproveitar?
– Filho de Dionísio, você sabe que nós deuses podemos ter corpo, além deste fluido e etéreo que você está vendo, e ainda a nossa real aparência, que vocês nunca realmente verão.
E eu fiz isto preparei uma banheira quente, com essência de dama da noite, algumas flores de gerânio e anilina azul clara para parecer a água da antiga Grécia, acendi algumas velas e a chamei para o banho. Ela se despiu dos panos escuros que envolviam o seu corpo, revelando um corpo com belas formas harmoniosas. Quando fui comentar alguma coisa, ela falou.
– Antes dos olímpicos, minha forma era outra, mas a partir dos ideais de Zeus, assumi esta forma, o que também é mais confortável, para aparecer aos moribundos. As outras formas grotescas que os humanos me retratam, são todas criadas pelo horror que vocês tem de mim. A inexorável, me chamam, a inflexível, dizem, como se nada pudesse me deter... Mas como você está vendo sou paciente, a quanto tempo espero aqui na sua casa?
– Realmente a senhora tem me surpreendido. Mas me preocupa isto que a Senhora falou, que apenas os moribundos a vêem, será este o meu caso? Por que não a vi quando veio buscar aqui mesmo nesta casa o meu pai?
– Não se preocupe, não é com você, nem com sua mãe se ela não se esforçasse tanto para morrer, ninguém sabe exatamente qual é o destino dela, mas eu sei que não é a hora dela agora, ela ainda tem mais alguns anos de vida se você interromper este processo. Eu lembro de você e de suas angustias, nas 48 horas que você passou no leito de morte do seu pai, quis algumas vezes levar ele antes da hora, enquanto seu interior gretasse, que era injusto tanto sofrimento, e pensou em afogá-lo com um travesseiro. Mas a inflexível é minha prima Laquesis que exige que eu só aja no momento que o fio acabe. E você me viu sim, me viu varias vezes, mas não tinha condição de compreender quem eu era e o que fazia aqui, no mesmo quarto onde está sua mãe. Você via minhas sombras, mas preferia, com medo, acreditar que era a sua falta de sono.
Enquanto falava se acomodava na banheira quente, e sorria de prazer, enquanto a água tépida envolvia seu corpo, respirava profundamente o cheiro da essência de dama da noite e das pétalas de gerânio. Fechava os olhos e parecia que tinha sonhos prazerosos. Mas de um momento para outro, seu rosto mudou e seus olhos se abriram com as orbitas vazias como uns buracos negros capazes de tragar galáxias. Sua voz mudou como se saísse das entranhas da terra:
– O que você está querendo comigo? Ninguém me trata bem! Sou totalmente odiada pelos humanos, os únicos animais que têm consciência da morte.
– Desculpe – falei – mas nem sei o que faz aqui. É a mim que veio buscar? Qual meu interesse em te agradar? E continuei...
– Que sabe a senhora sobre os sentimentos humanos, já que vive só, sem oferendas ou agrados por parte dos humanos, que passam a vida te evitando, o que conhece do amor? Como quer me entender ou adivinhar o meu intimo? Se não sabe nada do que estou passando. Eu que deveria perguntar o que faz aqui? Com tanta gente morrendo em agonia neste mundo, e a senhora perdendo tempo aqui na minha casa?
– Você não consegue entender direito o trabalho que faço..., o pré-morte também está incluído nas minhas atribuições... – disse ela. Não podemos mais chegar na hora da morte e assistir o fio das moiras sendo cortado, isto dava muita confusão, você humanos são muito teimosos, e quando vocês são pegos de surpresa tendem a acreditar que ainda estão vivos mesmo quando já estão apodrecendo. Você pode me fazer uma massagem nos meus pés.
Achei isto um abuso, mas querendo ver até onde chegaríamos, aceitei. Afinal, ela tomara a forma de uma mulher linda, embora que mesmo na água quente seus pés estavam gelados.
No começo de fevereiro, quando minha mãe atingia as profundezas da depressão, nos encontrávamos praticamente todos os dias, eu zanzando pela casa como um zumbi insone ela fazendo o seu trabalho. Cumprimentávamos-nos, as vezes batíamos um papo, mas não saia muito disso até o dia que ela me perguntou se tinha algum jogo em casa e dentro dos que tinha, ela me perguntou se eu jogava xadrez.
– Joguei muito na infância e adolescência, mas faz tempo que não jogo, disse eu.
– Eu também não sou grande coisa, mas vamos nos distrair um pouco, já que ambos passamos a noite em claro, respondeu ela.
Na verdade ela realmente não era grande coisa, dava a impressão que ela ficava divagando ao invés de planejar suas jogadas. Ganhei fácil a primeira partida. E a partir daí, todas as noites de fevereiro, jogamos pelo menos 3 horas de xadrez por noite, comigo ganhando a maior parte do tempo, e tripudiando a adversária. Nos divertíamos com isto, até o dia que comecei a perder...
Ao invés dela, devolver minhas brincadeiras, ela ficou séria e me disse:
Olha estamos chegando a um ponto critico sua mãe desistiu da vida e neste ritmo ela não vai durar mais 30 dias. No dia seguinte comecei o período mais critico da minha vida. Minha mãe parou de comer e o que conseguíamos fazer com que ela engolisse, ela devolvia, os médicos diziam que não havia mais o que fazer era só esperar... O difícil era esperar impassível o fim. Saber que ela estava se matando, ou a depressão a estava matando, de qualquer forma seus dias estavam contados, mesmo sendo contra a vontade das moiras
Nesta noite, não quis jogar, e falei com a minha parceira noturna, hoje não, quero ficar quieto, mas ela insistiu, vamos sim e falamos durante o jogo.
Ela jogou com as brancas e deu uma saída classica.
(quando cheguei aqui percebi que não devia ser um conto, mas tinha a sunto para um livro inteiro que já está sendo escrito)
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2 comentários:
oi, faz tempo que vc postou isso -- espero que ainda leia --- vc chegou a publicar o livro?????
Cara, eu queria muito terminar de ler o conto ou o livro, você terminou?
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