quarta-feira, maio 03, 2006

De Ariadne a Teseu

Toda a raça dos animais me pareceu mais amável do que tu
e não tive que temer de nenhum ser maior mal do que me causas.





O que lês eu te envio, Teseu, da praia onde tuas velas levaram sem mim teu navio, do lugar onde fui indignamente traída por meu sono e por ti, que te aproveitaste dele vergonhosamente.

Era o instante em que a terra fica coberta pelo transparente orvalho da manhã, em que os pássaros gorjeiam sob as folhagens que os cobrem. Nesse momento de despertar incerto, lânguida de sono, estendi, para tocar Teseu, mãos ainda entorpecidas; ninguém ao meu lado; estendi-as de novo, procurei mais; agitei meus braços na cama; levantei apavorada e me precipitei para fora desse leito solitário. Meu peito ressoou sob minhas mãos e meus cabelos, que a noite despenteou, foram arrancados. A lua me iluminava; observei se podia ver algo além da praia; a meus olhos não se apresentava nada além da praia. Corri para uri lado, para o outro, por toda parte, com tini passo inseguro. Uma areia profunda retinha meus pés de moça. Entretanto, ao longo da praia, minha voz gritou: "Teseu"; as grutas repetiam teu nome; os lugares por onde errei te chamaram tantas vezes quanto eu e pareciam querer socorrer uma infortunada.

Há uma montanha que no alto possui poucos arbustos; dali pende uma rocha minada pelas águas que estrondeiam a seus pés. Subi ali (a coragem me deu foras) e media vasta extensão dos mares que domino. Desse ponto (pois os ventos cruéis me ajudaram), vi tuas velas infladas pelo impetuoso Noto. Eu as vi de fato ou acreditei vê-Ias. Tornei-me mais fria do que o gelo, e a vida quase me fugiu. Mas a dor não me deixou muito tempo imóvel; ela logo me excitou; ela me excitou e eu chamei Teseu com toda a força de minha voz. "Para onde fugiste? Gritei; retorna, criminoso Teseu, vira para cá teu barco, ele não está completo".

Tais foram minhas preces; os soluços substituíam o que faltava a minha voz: golpes acompanhavam as palavras que eu pronunciava. Como não me atendeste, estendi, para que pudesses ao menos ver-me, meus braços fazendo-te sinais. Amarrei a uma comprida vara uma vela branca, para que lembrassem de mim aqueles que me esqueceram. Já o espaço te furtava à minha vista; então finalmente chorei pois a dor tinha até aquele momento interrompido o curso de minhas lágrimas. O que poderiam fazer meus olhos a não ser chorar por mim, já que tinham cessado de ver teu navio? Ora errava sozinha, com os cabelos desordenados, como uma bacante agitada pelo deus que o povo de Ógiges adora, ora com o olhar fixo sobre o mar, sentava-me sobre uma rocha, tão fria e tão insensível como a própria pedra que me servia de assento. Pisei muitas vezes o leito que nos tinha recebido e

que não deveria mais nos reunir. Toquei, o mais que pude, tuas impressões no teu lugar e o espaço que teus membros esquentaram. Atirei-me nele, e, inundando esse leito com as lágrimas que derramava, gritei: "Nós dois te esmagamos; recebe-nos ainda. Viemos aqui juntos; por que não irmos embora juntos? Leito pérfido, onde está a melhor parte de mim?"

O que farei? Para onde levar meus passos sozinha? A ilha é inculta. Não vejo nem os trabalhos dos homens nem dos bois. O mar banha em todo lugar as costas desta terra. Nenhum barco, nenhum está prestes a abrir rotas desconhecidas. Supondo que companheiros, ventos favoráveis e um barco sejam-me concedidos, para onde iria fugir? A terra paterna me recusa qualquer acesso.' Quando minha proa afortunada sulcar os mares tranqüilos, quando Éolo tornar os ventos propícios, serei uma exilada. Creta, com cem cidades soberbas, país que conheceu Júpiter no berço" não a verei mais porque traí meu pai, traí o reino governado por seu cetro justo, faltei a esses dois nomes tão queridos no dia em que, para salvar-te da morte, antes da tua vitória na muralha de mil voltas, dei-te por guia um fio que devia seguir teus passos. Disseste-me então: "Juro por esses perigos que tu serás minha enquanto vivermos". Nós vivemos e não sou tua, Teseu; se é que eu vivo, mulher que amortalhou a traição de um esposo perjuro.

Não me imolaste também, cruel, com a mesma clava que abateu meu irmão?; Essa morte te isentou do juramento que me fizeste. Agora revejo não apenas os males que devo suportar, mas todos os que pode sofrer uma mulher abandonada. A morte se revela ao meu espírito sob mil aspectos diferentes. Sofremos menos recebendo-a do que esperando-a. Vejo se aproximarem, de um lado ou de outro, lobos que com dentes ávidos rasgarão minhas entranhas. Talvez também o solo nutra leões com jubas avermelhadas. Quem sabe se esta ilha não é infestada de tigres ferozes? Dizem também que o mar vomita aqui enormes focas. Quem impede que gládios atravessem meu flanco? Só espero não gemer, como uma cativa, sob o peso cruel das correntes; não ver, como escrava, minhas mãos condenadas a um trabalho estafante, eu, de quem Minos é pai, e a mãe uma filha de Febo, eu, e é isso que não posso esquecer, eu que fui tua noiva! Se observo as ondas, a terra e as praias longínquas (a terra e as ondas me fazem as mesmas inúmeras ameaças. Restou o sol: temo os deuses e até suas imagens.) Sou uma presa, uma isca jogada sem defesa aos animais ferozes. (Ou, se homens cultivam e habitam esse lugar, eu desconfio deles. Minhas desgraças me ensinaram a temer os estrangeiros.)

Quisesse o céu que Androgeu não tivesse vencido, e que tu não tivesses expiado, terra de Cécrope, um assassinato ímpio com teus funerais; que teu braço cruel, armado com uma nodosa clava, não tivesse, ó Teseu, imolado o monstro, metade homem, metade touro; que eu não tivesse, para orientar o teu retorno, confiado a tuas mãos um fio que me atraiu para ti!

Não me surpreendo, afinal, de que a vitória tenha sido tua e que o monstro tenha tingido com seu sangue a terra de Creta; seu corno não podia furar um coração de ferro; sem escudo, teu peito bastava para te defender. Tinhas ali o pedregulho, o diamante, e tens aí, Teseu, como vencer o pedregulho.

Sono cruel, por que me retiveste nesse torpor? Eu devia desta vez ficar amortalhada na noite eterna! Vós também, ventos cruéis, tão obsequiosos naquele momento, vós que o servistes às custas de minhas lágrimas; tu, mão cruel, que feriste de morte meu irmão e eu; promessa vã, concedida a minhas preces; tudo conspirou contra mim, sono, vento, promessa; sozinha uma jovem foi vítima de uma tripla traição.

Prestes a morrer, não verei as lágrimas de uma mãe e nenhum dedo fechará meus olhos? Minha infortunada alma levantará vôo sob um céu estrangeiro e uma mão amiga não perfumará meus membros inanimados. Os pássaros marinhos abaterse-ão sobre meus ossos que não serão enterrados? É essa a sepultura que por meus benefícios mereci? Entrarás no porto de Cécropes; quando fores recebido em tua pátria, de tua alta morada verás a multidão se comprimindo para ouvir-te contar pomposamente a morte do monstro, metade touro metade homem, e como percorreste os caminhos sinuosos do palácio subterrâneo. Conta também que me abandonaste numa praia solitária; eu não devo ser esquecida entre os teus títulos gloriosos. Não tens como pai Egeu, nem como mãe Etra, filha de Piteu; os rochedos e o mar são os autores de teus dias.

Que não me tenhas visto do alto de tua popa! Tão triste espetáculo teria enternecido teu coração. Agora, vê-me, não mais com os olhos mas na imaginação, se puderes; vê-me ligada a um rochedo onde vem quebrar-se a vaga inconstante; vê a desordem de meus cabelos atestando minha dor, e minha túnica inundada de lágrimas como se a chuva a tivesse molhado. Meu corpo estremece como a espiga agitada pelo Aquilão e minha letra treme sob minha mão oscilante. Não te suplico em nome de um favor que terminou tão mal para mim; que nenhum reconhecimento seja devido ao serviço que te prestei, mas nenhuma piedade também: mesmo não sendo a causa de tua saúde não haveria motivo para que tu sejas a causa de minha morte.

Infeliz! Separada de ti pelo vasto mar estendo para ti essas mãos fatigadas de ferir meu pobre peito. Mostro-te, banhada em pranto, os cabelos que escaparam de meu furor. Eu te suplico, com lágrimas, que aplaques tua crueldade, Teseu, volta para mim a proa de teu barco; retorna, que os ventos te tragam. Se eu sucumbir antes do teu retorno, ao menos enterrarás meus ossos. ( Ovídio – As Heróides)

Um comentário:

Anônimo disse...

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