quarta-feira, dezembro 19, 2007

carta para outra margem do Estinge

Carta de jacques Lacarrière, para o amigo morto, Lawrence Durrell, só para ilustrar o Larry, escreveu o Quarteto de Alexandria onde aborda ensinamentos gnósticos. os quatro livros são geniais, pois cada um deles conta a mesma história, só que com narradores diferentes.

Por diversas vezes escrevi sobre DurrelI, a pedido de, seus amigos franceses e ingleses, testemunhos, lembranças de encontros e reflexões publicados em diferentes revistas. Citarei aqui apenas um desses textos, o meu preferido, pois não é um testemunho, mas um adeus. Um adeus amigável e fraternal. Dirigi a ele, estas linhas algumas semanas depois de sua morte (posso Ihes assegurar que cada uma das palavras aqui pronunciadas e registradas é Verídica.

Carta a Lawrence Durrell

Agora que você alcançou a margem oposta do Estinge, o que separa o mundo em que vivemos por um tempo, daquele em que viveremos todos os tempos, já está mais do que na hora de eu escrever a carta que lhe havia prometido. Ao dizer "está mais do que na Hora" é evidente que estou falando apenas por mim, para quem o tempo é contado, enquanto que o seu, muito certamente, já deixou de sê-lo. Não sei se uma simples carta possibilita atravessar o Estige, ou, pelo menos, abordar-lhe a margem em vida, mas espero que ela consiga encontrá-lo, entre dois passeios herborizantes, nas pradarias de asfódelos.

Lembro que um dia, em Sommières, num daqueles dias em que conversávamos calmamente diante das árvores de seu jardim e de uma bilha avermelhada pelo rosé do Gard, nós, evidentemente, abordamos, como se diz, o tema Grécia. E você, de repente, exclamou:

- Jacques, quando se escolhe viver na Grécia, você sabe tanto quanto eu, não se tem noção de tudo a que se está exposto: não apenas a viver aqui como os gregos vivos, mas a conhecer, após a morte, a sorte dos gregos defuntos: a atravessar o Estige, nós também!

- Então - disse eu -, precisamos recompensar Caronte. Mas como encontrar um óbolo para pagar a passagem? Não existem mais óbolos hoje, nem mesmo na Grécia!

- Escute, Caronte não nasceu ontem! Desde que transporta os mortos de uma margem à outra, ele aprendeu os movimentos do câmbio e o nome das moedas. Tenho certeza de que não recusará um franco ou um dólar.

- Acho que é demais. Ele se contenta com dinheiro miúdo. Um pêni ou um centavo bastará para fechar negócio. Ainda que um centavo seja tão difícil de encontrar quanto um óbolo!

- Isto sempre foi para mim um grande mistério, que Caronte peça uma quantia tão modesta.

- E para que acumular o dinheiro, que está sempre se desvalorizando e mudando ao fim de cada regime? Ele nem tem tempo de gastá-lo: os mortos chegam dia e noite à beira do rio. Eu chego a me perguntar como ele faz para dormir.

- Caronte, meu caro Jacques, é completamente insone, senão não conseguiria muita coisa.

Houve um instante de silêncio sorridente: Caronte passou discretamente, fantasmagoricamente, olhando de soslaio para o garrafão de rosé, cujo nível indicava as águas baixas do Estige. E desapareceu, também com uma espécie de sorriso, o que permitiu que, tanto Larry quanto eu, constatássemos que já não tinha mais um só dente.

- Caronte não é tudo - continuei. - Depois há o cão Cérbero e a descida ao Hades.

- Estou certo, Jacques, de que quando se desembarca do outro lado, o mais difícil já passou. Pois o mais penoso, evidentemente, é mudar de margem, passar de um estado a outro, de um tempo a outro tempo. Parece que isso acontece a partir do momento em que se chega ao meio do rio. A tal ponto que, depois de pisar na outra margem, não se sabe mais de onde se veio.

- Mas como saber que não se sabe mais nada? Ninguém jamais voltou do Hades para nos contar. Salvo Orfeu, porque conseguiu seduzir Perséfone com melodias melífluas ou sentimentais. Mas ele também nada diz sobre o Estige.

- Nesse caso, eu não tenho nenhuma chance de voltar. Eu canto pessimamente. Aliás, pergunto-me o que é que eu poderia cantar para Perséfone. Ela também, assim como Caronte, deve ter evoluído. Tenho certeza de que ela prefere canções modernas às jeremiadas antigas. Honestamente, Jacques, você acha que ela apreciaria os Beatles?

Difícil responder de bate-pronto. Não conheço muito bem o gosto de Perséfone em matéria de música moderna. Mas ninguém como Larry para travar, assim, no tom mais sério do mundo, conversas substanciais sobre temas tão inesperados. Aliás, será tão terrível atravessar o Estige? Larry, Larry em pessoa, descreveu essa navegação com riqueza de detalhes, num texto surpreendente, magnífico, secreto, apaixonante, cheio de humor e esoterismo, um coquetel composto de um dedo de Hermes Trimegisto, dois dedos de Jonathan Swift, uma raspinha de Oscar Wilde, tudo misturado numa coqueteleira em forma de ânfora!

Ouça os conselhos judiciosos que ele dá à sua tia Prudence, que acaba de partir para a grande viagem, antes que ela embarque no Estige, conselhos que valem para todos nós:

"Quando despertares, estarás numa água clara entre duas margens separadas que se afastam até uma vasta linha de horizontes atormentados e encimados por nuvens recortadas. 0 silêncio é tamanho que o som de tua respiração parece extremamente sonoro, forte como um fole de forja. A barca avança com infinita lentidão: terás tempo de descer e examinar esse território, que é, sem dúvida alguma, o mais interessante que já viste. É um universo calcinado, petrificado, reduzido a carbono elementar. Entendes por que não há nenhum som? Não se ouve mais a seiva subindo nas árvores, não se ouve mais o pulso batendo na garganta dos pássaros. Não se ouve mais o verme cego engolir sua partícula de lama. Estão todos aí - as árvores, os pássaros, o verme -, mas, agora, minerais. Tudo está tão silencioso que as uvas brancas do vinhedo luzem como pérolas. E a árvore do fruto proibido está carregada de enormes globos de um minério banal. Aí, se olhares berra, verás que cada maçã é um EL Greco, cada baleia, um Cézanne. Não percas a barca que flutua na correnteza desse universo encantado, pois à sanções. Após alguns instantes nesse lugar, tu te sentirás um pouco mal, cuspirás em teu lenço fragmentos de poeira de diamante e crina de cavalo. Mas não te preocupes. E apenas teu fígado, que se transformou em granito mosqueado.".'

Interrompo aqui essa primeira carta. Estamos, os dois, inclinados sobre a água do Estige, vendo o rio correr, uma água que se tornou escura e lenta. E tia Prudence, na outra margem, avança, tropeçando, em direção a uma silhueta estranhamente parecida com a sua, mas que ela hesita em reconhecer à sua volta há tantas outras silhuetas que tremem e estremecem , e, no entanto, ouço nitidamente seus lábios pálidos articularem, num sopro: "Doctor Durrell, I presume?".

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