O que os dentes estão fazendo num livro como este? Os dentes gregos seriam diferentes de todos os outros dentes do mundo? Claro que não. Menciono-os aqui porque, nos meus tempos de liceu, ao traduzir a Ilíada, reparei numa curiosa expressão usada para dizer a uma pessoa que ela havia ido longe demais em suas palavras: "Infeliz! Que palavra escapou do redil de teus dentes?".
O redil dos dentes! Eu logo imaginava a malta ou o rebanho das palavras, ovelhas ruidosas e fonéticas, empurrando por detrás da cortina dos dentes e passando a conta-gotas, ou melhor, a conta-palavras! Estranha - e figurada - concepção da linguagem, cujo significado implícito parece ser o de que as palavras só têm sentido e alcance uma vez pronunciadas ou proferidas abertamente. Daí palavras simplesmente pensadas mas nunca proferidas não terem existência própria e não poderem ser levadas em consideração. São como um pensamento não formulado, um desejo amordaçado, um gado retido aquém do imenso horizonte da linguagem manifesta.
A ofensa, o insulto eventual, a falta ou o delito começam além do redil dos dentes, além do aprisco palatal! Os gregos - refiro-me aos gregos antigos e, particularmente, aos gregos dos tempos homéricos - não davam, portanto, importância alguma ao pensamento íntimo do sujeito falante, qualquer que fosse sua natureza, enquanto ele estivesse em estado de pensamento mudo. Vê-se logo a diferença, e mesmo o abismo, que separa essa atitude daquela dos futuros cristãos.
Para os cristãos, a falta - ou o pecado - começa na própria fonte da linguagem, no mais íntimo do pensamento ou do desejo que a sustenta. Ver passar uma bela mulher, por exemplo, e começar a desejá-la, é já e em si um pecado. Para os cristãos, o pecado mora no seio dos pensamentos, como o verme na polpa da fruta, sem que seja preciso manifestá-lo. Ele é o irmão gêmeo do silêncio interior. Que abismo entre isso e a tolerância, a inocência do paganismo, para o qual nenhum pensamento não formulado publicamente pode ser repreensível!
Todo desejo que permanece ou tenha permanecido desejo está aquém do pecado, da falta. 0 redil dos dentes existe para impedir que ele se torne ofensa, provocação, que se transforme em ato. Aqui, naqueles tempos homéricos e talvez também em tempos mais tardios, os pensamentos - mesmo os mais impuros ou agressivos - guardam sua inocência e seu mistério como tantas ovelhas dóceis silenciosamente passando por detrás do redil dos dentes.
( Do Livro Grecia Um Olhar Amoroso de Jacques Lacarrièle)
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