terça-feira, abril 26, 2011

MITO E MITOLOGIA II


ESTRUTURAS E VARIAÇÕES

 É costume nomear e designar os mitos por nomes: o mito de Édipo, de Medeia, de Orestes. E contudo os nomes são um elemento superficial, inconstante e multiforme. Alguns derivam da acção, como Orestes, o "homem da montanha", que surge como vingador e foge como assassino. Outros são verbos-de-encher: um rei chama-se Creonte, "o que manda", uma filha de rei chama-se Creúsa. Muitos servem para ligar a narrativa à realidade social e local de então: Perseu como filho de Dânae é representante do ramo dos Dânaos que se estabeleceu em Argos e funda Micenas, o castelo mais poderoso desta paisagem.

Poucas em número e recorrentes de forma estereotipada são, em contrapartida, as estruturas da narrativa; por isso se voltou especialmente para elas a atenção da investigação mais recente. A maior parte das sequências narrativas são, no fundo, tão simples como fundamentais, actantes "bióticos" (o termo " biótico" foi introduzido por Max Luethi, Deutsche Zeitschrift fuer Volkskunde 2, 1973, 292), que estavam desde há muito delineados em modelos de comportamento na procura de alimentação, luta, sexualidade. Mas há uma particularidade que deve caracterizá-los como "estranhos", para entrarem na tradição narrativa, um elemento excepcionalmente reforçado ou uma espécie de congruência cristalina ou paradoxal.

De um Corpus de contos mágicos russos obteve Vladimir Propp em 1928 uma "Morfologia do Conto", que continua a satisfazer. Descreve-se um esquema narrativo que pode designar-se por "aventura" ou "procura" ("quest" ), como uma sequência de trinta e um elementos, "funções" : Por perda ou por incumbência, surge a missão, um herói prepara-se para o seu cumprimento; parte, encontra oponentes e adjuvantes, consegue um talismã decisivo, coloca-se perante o oponente, vence-o, o que não raramente deixa marcas nele mesmo; obtém o que procurava, põe-se a caminho do regresso, liberta-se de perseguidores e concorrentes; no final estão o casamento e a ascensão ao trono. É manifesto que decorrem segundo este padrão contos, romances e acções de filmes em incansáveis variações; e numerosos mitos gregos mantêm-se. Assim, os "trabalhos" de Héracles pertencem naturalmente a este tipo. Por exemplo, para ganhar os bois de Gerião, o herói tem de vaguear até aos confins da terra, no longínquo ocidente, forçar o deus do sol a pôr-lhe à disposição a sua taça dourada, na qual ele pode viajar sobre a corrente do Oceano até à "Ilha Vermelha"; aí mata o pastor, o cão de guarda de duas cabeças, o senhor tricórpore do gado de Gerião, e finalmente, traz de volta, com algumas dificuldades, os bois para Argos. De modo semelhante, de cada vez com particularidades marcantes, Héracles traz cavalos, javalis, corças, maçãs de ouro, até mesmo a oliveira de Olímpia (Burkert, 1979, 83-98). A viagem dos Argonautas tem como objectivo o velo de ouro, na longínqua terra do Sol, Aia: Jasão reúne os adjuvantes certos e constrói o primeiro navio, encontra o caminho no meio de dificuldades, executa as tarefas impostas pelo rei dos bárbaros, rapta, juntamente com o velo, a neta do Sol, Medeia, escapa à perseguição e chega a casa - em todo o caso, falta o desfecho feliz do conto. Por sua vez, por outro caminho, com outros adjuvantes e meios, Perseu ganha a cabeça de Medusa, o que lhe garante as futuras vitórias, de molde a ele poder desposar Antrómeda e tornar-se rei de Micenas. Do mesmo modo a angústia da "procura" e regresso cristaliza no quadro do Labirinto. Uma aventura de qualidade especial é a viagem ao além, tal como é contada, por exemplo, de Orfeu: para além da luta e rapto, trata-se aqui em primeiro lugar de ganhar sabedoria.

A luta, que fica no meio da seqüência das aventuras, pode, em virtude do seu significado na via real, reclamar também direito próprio. Narrativas de combates é coisa estimada e desenvolvem as suas próprias cristalizações (monografia completa: Fontenrose, 1959). O opositor do herói deve ser o mais possível perigoso e causador de medo, e de uma espécie tal que a sua derrota pré-determinada não desperta senão apaziguamento, por conseguinte, deve ser " mau" no sentido mais verdadeiro. Como distribuição ideal deste papel mostrou-se, já nas antigas culturas orientais, o monstro com caracteres ofídios, o dragão - esta é a palavra grega que significa serpente. O deus mais forte distingue-se pelo facto de ter dominado o dragão, a quem ninguém ousava contrapor-se: Jahvé de Israel triunfa de Leviatã, Marduk da Babilónia, de Tiamat, o deus hitita do tempo atmosférico, de Illuyankas, Zeus, de Tífon, Apolo de Delfos, de Píton. A tensão sobe, quando o herói é transitoriamente derrubado, aprisionado, enfraquecido, talvez mesmo morto. Isto liga especialmente o mito de Illuyankas e o de Tífon: o deus cai prisioneiro do dragão, e só quando um adjuvante lhe devolve, por uma artimanha, a sua força, é que ele pode, num segundo arranque, alcançar a vitória. Ao lado desta, há a possibilidade de dividir por dois protagonistas as duas lutas, derrota e vitória. O monstro como "anti-herói" torna-se assim " soberano interino", a vitória final é uma vingança, que traz de novo a ordem originária. É assim que o mito hitita da "realeza no céu", com a seqüência Anu (Céu)-Kumarbi-Deus-do-tempo-atmosférico corresponde até ao pormenor à sucessão dos deuses em Hesíodo: Uranos (Céu)-Kronos-Zeus. Aqui como ali, o soberano interino não-bom castra e engole o deus do Céu, facto que mais tarde ainda o derrubará. Contudo, em posição e função, é-lhe comparável também o mole assassino Egisto, entre Agamémnon e Orestes, o vingador do seu pai.

Quando o opositor é do sexo feminino, a narrativa do combate ganha uma dinânica adicional; motivações agressivas e sexuais cruzam-se em novas cristalizações. Héracles, Teseu, Aquiles lutam com Amazonas; Teseu gera numa Amazona um filho Hipólito, enquanto para Aquiles e Pentesileia amor e fúria combativa se enredam indissoluvelmente. Também a fase da " soberania interina" pode ser caracterizada pelo feminino: tanto em Lemnos como em Tirinto há um conto de uma rebelião de mulheres (Burkert, 1972, 189-216). Em Tebas, após a morte do rei, aparece a enigmática Esfinge, até que o novo rei, Édipo, a derruba. Clitemnestra, a assassina do marido e inimiga dos próprios filhos, desempenha junto de Egisto um papel análogo. Que a soberania do homem é a ordem certa, é um pressuposto do mito grego. É certo que Medeia assassina impunemente os reis em Iolcos e Corinto, assim como os próprios filhos, mas depois tem de retirar-se o mais depressa possível; também ela fica "soberana interina". Foi um equívoco concluir, a partir de mitos destes, que tenha existido um "matriarcado" pré-histórico.

Um outro grande grupo de narrativas gravita em volta de geração e nascimento. As leis biológicas conduzem a um travejamento da acção simples, que em si é pouco produtivo como narrativa, mesmo na forma de conto - a sua configuração como novela e romance é outra coisa. Contudo, o mito serve-se dela com predilecção, para descrever como em geral se origina qualquer coisa. Trata-se daquilo que foi gerado e nasceu de uma maneira única, o primeiro cavalo, um rei ancestral ou pai de uma raça, ou um novo deus. Então o ato é rodeado de singularidades fantásticas; porquanto o que é essencial só pode decorrer de condições especiais Poséidon transformou-se num garanhão e acavalou a Deméter "negra" metamorfoseada numa égua: assim se formou o cavalo Aréion. Zeus perseguiu Nemésis através de todas as suas metamorfoses em peixe, animal terrestre e ave: do ovo que finalmente se pôs saiu Helena, a mais bela mulher ou talvez mesmo uma deusa. A resistência da companheira proporciona frequentemente a tensão própria. Peleu agarrou a deusa marinha Tétis através de todas as suas metamorfoses, até que ela se rendeu e finalmente deu à luz Aquiles - em todo o caso, depois disso abandonou de novo a morada humana. O modo como Zeus se aproximou de Leda como cisne, de Europa como touro, de Dânae como chuva de ouro, de Alcmena, no entanto, com a máscara do seu próprio marido Anfitrião, em breve foi resumido em catálogos burlescos; contudo aqui trata-se também, em especial, dos filhos, Dioscuros, Minos, Perseu e Héracles. Atena esquiva-se a ser importunada por Hefestos, até que o sémen cai na terra: esta gera assim o rei primevo dos Atenienses, Erictónio; o Erectéion e o Templo de Hefestos ficam em frente um do outro, com a Agora de permeio. Curioso é, no sentido inverso, quando o parceiro feminino toma a iniciativa. É às deusas que isso compete: Afrodite concebe Eneias de Anquises, Deméter entrega-se a Iásion num campo três vezes lavrado, e traz ao mundo Plutos, a riqueza da colheita; para Iásion, isto significa a morte, para Anquises, uma enfermidade para toda a vida. Por último, o mito pode também dar notícia de uma geração e nascimento sem parceiro, de modo simultaneamente experimental ou como caso-limite: a virginal Atena salta da cabeça de Zeus, ao passo que Hera, em contrapartida, dá à luz sem marido o deus ferreiro Hefestos, que no entanto é coxo.

Resistência provoca tensão: a continuação típica da história do nascimento refere perigo mortal, perseguição e exposição do recém-nascido. Naturalmente que a criança é salva, cresce no meio dos animais, ladrões, pastores, ao encontro do seu grande destino. Esta forma de lenda do rei foi narrada acerca de Sargão da Acádia, como de Moisés, de Ciro, como de Rómulo (Gerhard Binder, 1964). Mas também Zeus teve de ser alimentado por uma cabra, escondido do pai na gruta cretense, e Dioniso cresceu na longínqua Nisa, junto das Ninfas, enquanto Hera perseguia a mãe e as amas dele.

Se o nascimento do herói for contado do lado feminino, temos diante a estrutura da "tragédia da donzela", da " heroína perseguida" (Burkert, 1979, 6 sq.). De novo se varia um esquema básico simples: uma rapariga, saída da segurança da família e da infância, é em primeiro lugar apresentada em solidão idílica -contudo pode também tratar-se de uma prisão; aí é dominada por um deus ou por um herói. Segue-se uma fase de castigo ou de martírios, até que, com o nascimento do filho do herói, talvez também só mais tarde por meio deste mesmo, se leva a termo a salvação. É assim que Dânae é aprisionada num aposento de bronze, e contudo fica grávida de Zeus em forma de chuva de ouro; é encarcerada numa arca com o seu filho Perseu e lançada ao mar, mas levada para terra na ilha longínqua de Serifos, onde Perseu pode crescer. Passam por sofrimento semelhante outras mães de heróis, por exemplo Calisto, a mãe-ursa do povo arcádio, ou Antíope, a mãe dos Dioscuros tebanos Anfíon e Zeto, ou Auge, a mãe de Télefo, fundador de Pérgamo. Na antiguidade tardia, então, Lúcio Apuleio deu forma literária ao esquema no conto de Amor e Psyche, que produziu ou pelo menos influenciou um dos mais apreciados tipos de conto (Detlef Fehling, 1977).

Todas estas estruturas são de imediato compreensíveis " bioticamente" . Em especial a "tragédia da donzela" segue, no fundo, o desenvolvimento natural da puberdade, passando pelo desfloramento e gravidez até ao parto. Outras formas parecem mais sombrias, perversas mesmo, especialmente um grupo que aponta para sacrifícios humanos e canibalismo. Também aqui é visível um fundo "biótico", o encadeamento indissolúvel de matar e comer, que contudo se configura de maneira muito específica nos rituais dos sacrifícios cruentos; estes pressagiam para os mitos a estrutura da sua acção. Assim, o pai esquarteja o próprio filho - Tântalo e Pélops - ou é levado por engano ou loucura a comer da carne do próprio filho assim é com Tiestes ou Tereu. Menos crua, mas não menos terrível é a situação, quando o pai sacrifica a própria filha: Ifigénia ou as filhas do rei de Atenas, Cécrops. O sacrifício do próprio filho aparece igualmente: Meneceu em Tebas, o filho de Idomeneu em Creta. Os paralelos do Velho Testamento, Isaac e a filha de Jefté, já há muito se fizeram notar. Depois são outra vez as mães que dilaceram os próprios filhos no delírio dionisíaco; assim em especial Agave e Penteu, que, como rei de Tebas, se arrogara o direito de opor resistência a Dioniso. A situação de crueldade, porém, é, na narrativa, sempre " tempo de excepção", tempo intermédio, desencadeado por uma história anterior; têm de seguir-se conversão, castigo, mudança, a fim de a narrativa atingir o seu alvo. No fundo estão rituais de sacrifícios com a sua ambivalência da culpa e expiação, derramamento de sangue e purificação (Burkert, 1972), tal como a referência a deuses, oráculos e santuários é especificamente própria deste tipo de mitos. E, contudo, sacrifício e fundação podem também aparecer no mito sob um aspecto completamente diferente, à distância do divino e com consciência própria do humano, não trágico, não sério, mesmo, até ao limite do cínico. Foi em mitos indianos em primeiro lugar que foi concebida e nomeada a forma do " trickster" (trampolineiro), do portador da cultura, que executa como se fosse um "desporto" infracções à regra e quebras de tabus e possibilita aos homens a existência, mesmo contra a vontade dos deuses. Nesse sentido se conta em babilónio a história de Atrahasis, o "que se distingue pela astúcia" (cf. Wilfred George Lambert, Alan Ralph Millard, Atra-hasis. The Babylonian Story of the Flood, Oxford, 1969), em grego a de Prometeu, o amigo dos homens; este faz a divisão das vítimas de tal maneira que ficou para os homens praticamente toda a carne que se podia comer, e roubou a Zeus, do céu, o fogo igualmente necessário para cozinhar e trabalhar. É comparável o deu Hermes no Hino "homérico", que rouba os bois ao seu irmão Apolo, para podê-los matar e assar, além disso inventa a lira e canta a formação do Kosmos. Para Hesíodo é um sacrílego, que não pode escapar ao terrível castigo de Zeus; enquanto está agrilhoado no Cáucaso, uma águia come-lhe o fígado diariamente; mas os homens vivem do produto da sua astúcia. Um drama do começo da época sofística, o Prometeu Agrilhoado (transmitido como obra de Ésquilo, mas com a máxima probablidade composto por um outro poeta - Mark Griffith, The Authenticity of Prometheus Bound, Cambridge 1977) deu à rebelião do portador de cultura contra o deus a forma de um orgulho obstinado, que desde então define a compreensão que o homem tem de si próprio como atitude " prometeica".

Esta passagem em revista de estruturas da narrativa da mitologia antiga não pode ser sistemática nem exaustiva. Deve apenas dar indicações sobre o modo como as formas se repetem variando, como a dinâmica da acção está enraizada em programas tradicionalmente humanos mais genéricos; mas aqui e ali se tornou perceptível como os nomes, de caso para caso, apontam para realidades cada vez mais distintas. A maior parte pode aparecer como tipicamente humana. A singularidade da mitologia grega, em contraste com as de outros povos, pode, inicialmente, conceber-se de preferência como negativa: o elemento mágico passa a segundo plano - quase não há mitos de encantamento e desencantamento; também a narrativa-advertência ("cautionary tale") mal se encontra na sua forma pura. A maior parte das " histórias" antigas são de qualquer forma ambivalentes, susceptíveis de interpretações diversas. A sua " sabedoria" pode coordenar e fundamentar a realidade, pode orientar e esclarecer, no entanto muitas vezes tem de se lutar pela explicação; não se oferecem receitas prontas. A tradição mítica transcende as experiências individuais e por isso mesmo é, para cada um, mais um desafio do que uma solução, no trato com a realidade.

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