terça-feira, abril 26, 2011

MITO E MITOLOGIA



(Texto Fundamental para a compreensão e estudos da mitologia)

 DE WALTER BURKERT

Tradução da Prof.ª Dr.ª Maria Helena da Rocha Pereira da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

NOTA PRÉVIA
 
A discussão sobre a interpretação do mito principia, como tantas outras críticas à tradição, com os Sofistas. Mas é a partir dos finais do século XVIII, com Herder, que ele se torna objeto de investigação científica. Um século volvido, a formação de novos ramos do saber atraiu para novos campos a exploração desta intrigante manifestação cultural, que aos poucos se vai alargando a outros povos para além do grego, quer através da decifração de esquecidos poemas orientais, quer pela análise directa de civilizações orais dos nossos dias, nos mais recônditos lugares do planeta. Assim, não só classicistas como orientalistas, germanistas, antropólogos, teólogos, psicólogos se têm dedicado ao assunto, propondo exegeses não raro antagônicas, muitas das quais o tempo se tem encarregado de obliterar, embora seja arriscado afirmar que qualquer delas se encontre totalmente extinta. A influência da teoria psicanalítica e, nos últimos decénios, do estruturalismo, são uma realidade indesmentível, e muitos dos epígonos deste último sistema continuam a sobreviver às vigorosas e bem fundamentadas críticas que lhes têm sido dirigidas em anos recentes.

No meio desta confusão doutrinal, resultante, em parte, da multiplicidade de formas a que a palavra mito se aplica', sobressaem, pela sua clareza, rigor interpretativo, riqueza de formação e subtileza na relacionação dos fenômenos, as obras daquele que é hoje geralmente considerado o melhor especialista da religião grega, o Professor Walter Burkert. Das muitas que o notabilizaram, escolheremos, para servir de orientação geral ao complexo tema, dado o seu carácter propedêutico, a introdução que o célebre professor da Universidade de Zurique escreveu para a publicação monumental Propyläen Geschichte der Literatur, Vol. I, publicada em 1981. Foi daí que traduzimos as páginas que se seguem, graças ao generoso consentimento, quer do autor, quer da editora, Propylãen Verlag, de Berlim, a quem endereçamos os nossos agradecimentos. Estes não ficariam completos, porém, se não mencionássemos aqui também o nome do nosso colega de Estudos Germanísticos, Professor Doutor LUDWIG SCHEIDL, que com profundo saber e espírito atento reviu a totalidade da nossa versão.

Este livrinho, de uma apresentação modesta, que contrasta com o seu indiscutível valor científico, destina-se aos nossos estudantes. Possam eles encontrar aqui a base de que necessitam para entrar num mundo em que a imaginação, a experiência, a intuição se entrecruzam, para produzir essa estranha e sempre actual forma de cultura que é o mito.

MARIA HELENA DA ROCHA PEREIRA

1 Como escreveu G. S. Kirk (The Nature of Greek Myths, 1974, p. 18), "parece não ter ocorrido a muitos especialistas que os milhares de histórias individuais a que se aplica geralmente o nome de "mito" cobrem um enorme espectro de assuntos, estilos e sentimentos; de modo que é provável a priori que a sua natureza essencial, a sua função, finalidade, origem, variem também".

 
ESSÊNCIA E FUNÇÃO

"Mythos" - latinizado em " "mythus" - tornou-se, pelo menos desde os anos 20 deste século, de novo respeitável, e continua a falar-se dele, sem que contudo se liberte da ambiguidade que lhe está adstrita: um mito é ilógico, inverosímil ou impossível, talvez imoral, e, de qualquer modo falso, mas ao mesmo tempo compulsivo, fascinante, profundo e digno, quando não mesmo sagrado. Faz-se apelo, ora por uma tendência emancipadora, ora nostálgica, a considerar um mito como pré-juízo, e assim a superá-lo ou a reconduzi-lo à sua ligação com uma pré-ciência originária.

Que uma tradição cultural é veiculada pelos seus mitos, é tarefa e resultado de investigação científica desde os tempos de Johann Gottfried Herder (para tal deu um importante impulso Christian Gottlob Heyne - cf. Otto Gruppe, Geschichte der Klassischen Mythologie und Religionsgeschichte, 1921, 109-112). Aí mitologia designa tanto colecção e sistema dos mitos de um povo, como a ciência que se ocupa do seu significado. A Etonologia reuniu Mitologias de todos os povos" (cf. John Arnold MacCulloch, Louis H. Gray; Alexander Eliot, Pierre Grimal; G. W. Haussig). Tomou-se frequentemente como estádio necessário ao desenvolvimento da história da humanidade uma "idade mítica" assinalada por uma consciência mítica" especial. O facto de, com tudo isto, se empregar sempre a designação do grego antigo, "mythos" mesmo, é mais do que um acaso. Na cultura antiga - pré-cristã - o poder dos mitos é de facto de uma qualidade quase única: dominam poesia e artes figurativas, mesmo a religião se exprime de preferência por meio deles, e a filosofia nunca se emancipou deles completamente. Mas também na política são pressupostos como dado adquirido e actuante, emprestam o seu prestígio a grandes famílias e condicionam uma grande parte do que é compreensão própria para o homem comum. E, como a cultura grega era pensada e tinha força para se impor, não como uma norma jurídica ou pelo poder de escritos revelados, mas acima de tudo como forma artística, em toda a parte no domínio da sua irradiação se encontra a mitologia "clássica", nem que seja, em última análise, só como forma de cultura residual: é preciso, afinal, saber o que é um "Caos" ou uns "estábulos de Augias", um "calcanhar de Aquiles" ou "um cavalo de Tróia".

Há muito que a Mitologia aparece de preferência sob a forma de um manual, que enfileira uma quantidade desorientadora de nomes em curiosos fios de acção e que, da vitalidade do mito, não preservam, afinal, mais do que um herbário o suco e o perfume das plantas. Onde e sob que forma se pode encontrar o mito vivo, sobre isso não há certamente uma opinião unânime. O mito como moda aproxima-nos sobretudo de equívocos modernos, e em primeiro lugar deste, de que o mito radica de preferência nas profundezas irracionais ou em zonas-tabu para além da linguagem - ou, de modo mais banal, só o que é especialmente primitivo é mítico. Na verdade, mito não tem nada a ver com mística. A palavra grega "mythos" significa "fala, narração, concepção". No tempo do Iluminismo grego, contudo, transformou-se no termo próprio para designar à distância as velhas narrativas, que não eram verdadeiramente para serem tomadas a sério. Apesar disso, o mito revela-se numa cultur superior, adulta e madura.

Os mitos são - e isto é fundamental - narrativas tradicionais. Nessa medida, a mitologia é um domínio parcelar da investigação geral sobre a narrativa. Só é difícil delimitar os mitos no seu verdadeiro sentido da multiplicidade de tipos narrativos existentes. Um mito pode ser contado como um conto (Märchem), mas, no entanto, diferencia-se dele pelo facto de, normalmente, não ser contado por si mesmo e já não o ser nada, sobretudo, para crianças; mito é narrativa popular, e contudo acessível a uma formulação individual, e até, em grego, receptáculo da poesia clássica do mais alto nível; o mito coincide, em grande parte, com a lenda (Sagen) e contudo é duvidoso se é possível extrair dele um "núcleo histórico".

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