sexta-feira, junho 03, 2011

O JUÍZO DOS DEUSES 74





(Do livro Dialogo dos Deuses de Luciano de Samósata)
 
ZEUS
Hermes, toma lá esta maçã e parte para a Frígia para junto do rapaz filho de Príamo, o boieiro que apascenta o gado perto do Gárgaro, no monte Ida, e diz-lhe: “Ó Páris, Zeus ordena que, já que és formoso e entendido nos assuntos amorosos, julgues qual destas deusas é a mais bela! Que a vencedora do certame receba como prêmio esta maçã.”
(Dirigindo-se às deusas) E quanto a vocês, já é tempo de partirem para junto do vosso juiz! Eu cá me recuso a julgar, porque gosto de vós de igual forma e, se fosse possí­vel, gostaria de ver-vos a todas vencedoras. Além disso, necessariamente, ao atribuir o prêmio a uma, por certo seria odiado pelas restantes outras, por isso não é conveniente que eu seja o vosso juiz, mas sim o jovem frígio, para junto de quem vocês vão — é de estirpe real, da família de Ganimedes, e também simples e rústico!! Ninguém poderia conside­rá-lo indigno de julgar-vos.
AFRODITE
Ainda que Momo75 tivesse sido designado para arbitrar a questão, eu cá não teria receio de mostrar-me, Zeus. Que defeito poderia ele encontrar em mim? Mas é preciso que as outras também concordem.
HERA
Nós também não temos nada a recear, Afrodite, nem que o teu querido Ares fosse encarregado do arbítrio. Mas aceitamos esse Páris, seja lá quem for.
ZEUS
(Para Atena) E tu, minha filha, concordas com isso?
(Atena mostra-se envergonhada, mas ainda assim acena em sinal de consentimento) O que dizes? Estás a abanar a cabeça e a corar? É próprio de vós, donzelas, envergonha­rem-se com estas coisas! Mas ainda assim, estás a acenar afirmativamente.
(Para as restantes deusas) Agora ide, e que as vencidas não se mostrem desagradáveis para com o juiz, nem façam mal ao rapaz, pois não é possível que sejam todas igualmente belas!
HERMES
(Para as deusas) Vamos imediatamente para a Frigia! Eu vou à frente e vocês, sigam-me, sem hesitações e com confiança! Eu conheço Páris. É um belo jovem, galante e o mais capaz para julgar este tipo de assuntos! Ele não emitirá um mau juízo.
AFRODITE
Isso está tudo bem e estás a falar a meu favor, quando dizes que o juiz será justo para conosco! (Em segredo, para Her­mes) Mas ele é solteiro ou vive alguma mulher com ele?
HERMES
Não completamente solteiro, Afrodite.
AFRODITE
Como dizes?
HERMES
Parece que uma mulher do Ida vive com ele, bastante simples, por um lado, mas por outro, também terrivelmente agreste — de qualquer forma, parece que não se importa muito com ela.
Mas porque é que estás a fazer estas perguntas?
AFRODITE
Perguntei por nada em especial.
ATENA
(Em tom de censura) Então?! Tu aí, não estás a desempe­nhar bem a tua função, ao ficares ainda há pouco a falar em particular com esta (apontando Afrodite).
HERMES
Não estávamos a falar nada de mal, nem nada contra vocês, Atena! Ela só estava a perguntar-me se Páris é solteiro.
ATENA
Para que é que ela queria saber isso?
HERMES
Não sei! Diz que lhe ocorreu simplesmente e que não fez a pergunta com um propósito em especial.
ATENA
E então? Ele é solteiro?
HERMES
Não me parece.
ATENA
(Julgando por si própria) Ele tem paixão pelos assuntos da guerra, gosta da glória, ou é simplesmente um boieiro?
HERMES
Não posso dizer ao certo, mas sendo jovem, é de imaginar que tenda a alcançar essas coisas e a querer ser o primeiro na luta.
AFRODITE
(Para Hermes) Vês? Não estou a repreender-te, nem a acusar-te de falares em particular com ela! Isso são coisas de quem tem por costume queixar-se, não de Afrodite.
HERMES
Ela estava a perguntar-me praticamente o mesmo que tu! Assim não tens que preocupar-te, nem que considerar-te menos favorecida, se eu lhe responder com a mesma since­ridade do que a ti.
(Olhando para o caminho) Mas enquanto estávamos aqui à conversa, já nos afastamos muito dos astros e estamos quase na Frígia. Ora eu estou a ver perfeitamente, se não me engano, o Ida e o Gárgaro por inteiro e também o vosso juiz em pessoa, Páris.
HERA
(Tentando a todo o custo visualizar) Onde está? Não estou a vê-lo.
HERMES
Olha aqui do lado esquerdo, Hera, não para cima do monte, mas na encosta, onde está a caverna, ali onde se encontra a manada.
HERA
Mas eu não estou a ver a manada.
HERMES
O que é que estás a dizer? (Apontando) Não vês uns boizinhos aqui na direção do meu dedo, a saírem de entre as rochas e um indivíduo a descer do cimo de uma rocha, a se­gurar um cajado e a impedir que a manada se disperse para longe?
HERA
Agora já estou a ver, se é que é mesmo ele.
HERMES
É ele, sim. Uma vez que já estamos perto, se acharem bem, descemos à Terra e vamos a caminhar, para não o assustar­mos ao descer subitamente do céu.
HERA
Tens razão. Assim faremos. (Descem das alturas)
(Ironicamente, para Afrodite) Agora que já chegámos, está na hora de tu, Afrodite, ires à frente e de nos indicares o caminho. Naturalmente, tu estás uma perita, já que, se­gundo se diz, desces muitas vezes à Terra, para encontrares Anquises.
AFRODITE
Não me incomodas muito com os teus sarcasmos, Hera.
HERMES
(Continuando a caminhada) Pois eu é que vou guiar-vos ! Na verdade, também eu já estive no Ida, na época em que Zeus se apaixonou pelo rapaz frígio. Vim aqui muitas vezes enviado por ele para vigiar o jovem, e quando se transformou em águia, voei juntamente com ele, e ajudei-o a transportar o garboso rapaz. (Apontando para um rochedo) Se bem me lembro, foi a partir daqui, desta pedra, que o levou para cima! Ele encontrava-se então a tocar flauta junto do rebanho! Zeus aproximou-se dele pela retaguarda, com facilidade rodeou-o completamente com as garras e segurando-o com o bico pelo chapéu preso á cabeça, ergueu o rapaz que, espantado e com o pescoço revirado, olhava para ele. Então, segurando a flauta, - pois ele tinha-a perdido com o medo - eu... (Chegando junto de Páris) ora eis-nos aqui perto do vosso juiz! Pois então       acerquemo-nos dele!
(Dirigindo-se a Páris) Saudinha, pastor!
PÁRIS
(Admirado) Para ti também, jovem! Mas por que motivo é que vieste até aqui, a estes domínios? E quem são essas mulheres que estás a conduzir? Elas não devem ter o costume de percorrer as montanhas, de tal maneira são belas.
HERMES
Todavia não são mulheres, Páris! Estás a ver Hera, Atena, Afrodite e a mim, Hermes, enviado por Zeus.
(Páris fica estupefato) Mas porque é que estás a tremer e a ficar pálido? Não tenhas receio! Não é nada de mal. Ele ordena que tu sejas o árbitro da beleza delas. Já que é belo, diz ele, e entendido no amor, lego em ti a decisão e logo que tenhas lido a inscrição na maçã ficarás a conhecer o prêmio da contenda.
PÁRIS
(Com um gesto, pede a maçã a Hermes, que lha entrega) Deixa cá ver o que é que ele quer. Diz “Que a mais formosa me possua.”
Mas agora, ó senhor Hermes, como poderei eu, um mortal e um rústico ser juiz de um espetáculo tão incrível e superior a um boieiro? É que tomar essas decisões é algo mais próprio de efeminados e de indivíduos da cidade. Eu cá, de acordo com o meu ofício, poderia rapidamente decidir entre uma cabra e outra cabra, uma bezerra e outra, qual a mais bela. (Apontando para as deusas) Porém elas são todas igualmente belas e não sei como poderia retirar a vista de uma e transferi-la para outra! Ela não quer afastar-se com facilidade. Fixa-se na primeira, renuncia a tudo e aprova o que está á sua frente! E se transita para outra, acha-a bela, encanta-se e fica também cativada pelas outras que estão próximas e, em suma, a beleza delas espalhou-se á minha volta, tomou-me por inteiro e sofro por não conseguir, á semelhança de Argos, ser capaz de ver por meio de todas as partes do meu corpo.
Parece-me que efetuarei um bom julgamento se der a maçã a todas. Ainda por cima, acontece que aquela é irmã e esposa de Zeus, e as outras, suas filhas ! Então assim como é que não há-de ser difícil a decisão?
HERMES
Não sei, mas não é possível fugir ao que Zeus ordena.
PÁRIS
Ó Hermes, ao menos as convence disto: que as duas que forem vencidas não fiquem com ressentimentos contra mim, mas que considerem que a culpa é apenas dos meus olhos.
HERMES
(Depois de lhes lançar um olhar inquisidor e de obter uma resposta positiva) Dizem que assim farão!
E agora já é tempo de chegares a um juízo!
PÁRIS
(Com resignação) Hei-de chegar! O que é que me resta?!
Mas antes quero saber uma coisa: acaso será suficiente olhar para elas, tal como estão, ou será conveniente des­pirem-se para uma análise mais minuciosa?
HERMES
Isso pode ficar dependente do teu critério. Ordena como te aprouver.
HERMES
(Para as deusas) Vocês, dispam-se! (Para Páris) E tu, observa!
Eu cá vou desviar o meu olhar.
HERA
Com certeza, Páris! E eu vou ser a primeira a despir-me, para que te apercebas que não tenho apenas os braços alvos e que não me orgulho apenas em ser a dos olhos grandes76, porque em cada um dos meus membros, eu sou igualmente bela.
PÁRIS
Despe-te também, Afrodite!
ATENA
Páris, ela que não se dispa antes de largar o seu cinto77, pois é uma feiticeira! Não vá ela ludibriar-te com ele. Para além do mais, não devia apresentar-se assim toda adornada, nem enfeitada com essas pinturas, como uma cortesã qual­quer, mas sim mostrar a sua beleza natural.
PÁRIS
(Visivelmente satisfeito) Ordeno como me aprouver? Quero vê-las nuas.
PÁRIS
(Para Afrodite) Elas têm razão no que toca ao teu cinto, por isso, larga-o!
AFRODITE
Ó Atena, então e porque é que tu não largas o capacete e mostras a cabeça sem nada, em vez de agitares o penacho e aterrorizares o juiz? Ou temes envergonhar-te por a cor dos teus olhos poder ser notada sem o aparatoso capacete?
ATENA
Então olha, já tirei o capacete.
AFRODITE
Olha, e eu o cinto.
HERA
Então dispamo-nos!
PÁRIS
(Absolutamente maravilhado com o espetáculo) Ó Zeus prodigioso, que espetáculo, que beleza, que satisfação! (Olhando Atena) Que donzela esta... (Contemplando Hera) como resplandece aquela de nobreza e magnificência, verdadeiramente digna de Zeus... (Admirando Afrodite) e o doce olhar, o sorriso elegante e atraente daquela!
Mas chega de felicidade! Pois se acharem bem, gostaria de examinar cada uma em particular, já que agora estou confuso e não sei para o que olhar, distraída que está a atenção da vista em todas as direções.
AFRODITE
Façamos assim.
PÁRIS
Agora saiam vocês as duas! E tu, Hera, fica.
HERA
Fico, e quando tiveres acabado de apreciar-me com rigor, terá chegado a hora de tu veres se te parecem belos os pre­sentes em troca do teu voto em mim! Pois se me considerares a mais bela, Páris, serás senhor de toda a Ásia.
PÁRIS
(Irritado) Os meus juízos não dependem de presentes. Agora sai! Eu decidirei como achar justo.
(Para Atena) E tu, Atena, aproxima-te!
ATENA
Já aqui estou na tua presença, Páris, e, se me considerares a mais bela, nunca sairás vencido de uma luta, mas sempre vencedor! Tornar-te-ei um guerreiro e um conquistador.
PÁRIS
(Irritado) Não preciso de guerra nem de luta, Atena! Como vês, a paz impera agora na Frigia e na Lídia e além disso, o reino do meu pai vive em paz. Mas tem confiança, pois não serás prejudicada, uma vez que não tomarei a minha decisão baseado nos presentes ! Podes vestir-te e colocar o capacete! Já vi o suficiente. Chegou a vez de Afrodite se apresentar.
AFRODITE
Aqui estou, perto de ti, vê pormenorizadamente e não tenhas pressa. Detém-te em cada um dos membros. E se quiseres, bonito rapaz, escuta o que vou dizer-te. Tendo-te eu visto já há muito tempo, jovem e belo, de um tipo que não sei se a Frigia criou outro igual, acho-te feliz com a tua beleza, mas repreendo-te por não abandonares os rochedos e essas pedras aí, para viver na cidade, em vez de desper­diçares a beleza na solidão. Que partido é que tu podes tirar das montanhas? E que proveito poderão tirar as vacas da tua beleza? Já devias ter-te casado, certamente não com alguém rude e campestre, como as mulheres das redondezas, mas com uma rapariga da Hélade, de Argos ou de Corinto ou então de Esparta, como Helena, uma jovem, bela, seme­lhante a mim, e sobretudo apaixonada! Só de ver-te, eu estou certa de que largaria tudo, entregar-se-ia a ti, seguir-te-ia e iria viver contigo. Mas certamente tu já terás ouvido algo acerca dela.
PÁRIS
Absolutamente nada, Afrodite! Mas agora gostaria de ouvir-te.
AFRODITE
Ela é filha de Leda, aquela mulher bela, para junto de quem Zeus voou, transformado em cisne.
PÁRIS
E como é que é de aparência?
AFRODITE
Por um lado, é branca, como seria de esperar ao ter nas­cido de um cisne, por outro, delicada, já que foi gerada dentro de um ovo, expedita em muitas coisas, hábil na palestra e de tal modo admirada, que se travou uma guerra por causa dela, quando roubada em criança por Teseu. Assim que atingiu a flor da idade, todos os mais valorosos dos Aqueus pretendiam a sua mão em casamento, mas o escolhido foi Menelau, da família dos Pelópidas! Se quiseres, eu farei com que ela seja a tua esposa.
PÁRIS
O que é que estás a dizer? Uma mulher casada?!
AFRODITE
Tu és jovem e ingênuo, mas eu sei o que é preciso fazer nessas circunstancias.
PÁRIS
O quê? Eu também quero saber.
AFRODITE
Tu vais fazer uma viagem como se fosse para contemplar o ambiente da Grécia. Quando chegares à Lacedemónia, Helena ver-te-á, e depois o trabalho difícil — como ficar apaixonada e deixar-se levar por ti — será meu.
PÁRIS
É isto que me parece inverossímil: abandonar o marido, e querer embarcar com um bárbaro, um estrangeiro.
AFRODITE
Tem confiança! Eu tenho dois belos filhos, Hímero78 e Eros: esses eu quero confiar-los para que sejam teus guias no caminho ! Por um lado, Eros apoderar-se-á dela por com­pleto e obrigará a mulher a apaixonar-se por ti. Hímero, por outro lado, envolvendo-te, conseguirá tornar-te semelhante a ele, atraente e gracioso. Eu própria ajudar-te-ei, estando presente, e pedirei às Graças79 que me acompanhem, para que todos juntos consigamos persuadi-la.
PÁRIS
Como isto vai acabar não sei, Afrodite! O que sei é que estou apaixonado por Helena. Sem como nem porquê, já me imagino a vê-la, a navegar para a Grécia, a chegar a Esparta, a regressar na companhia dessa mulher. Sofro por não estar já a concretizar tudo isso.
AFRODITE
Páris, não comeces a apaixonar-te, antes de recompen­sares a casamenteira e madrinha de casamento com a tua decisão favorável!
Convém que eu vos acompanhe vitoriosa e que festejemos simultaneamente os esponsais e a vitória! E tudo isto está ao teu alcance - o amor, a beleza, o casa­mento, todas estas coisas em troca de uma maçã.
PÁRIS
Temo que te esqueças de mim depois de tomada a de­cisão.
AFRODITE
Acaso pretendes que jure?
PÁRIS
De modo nenhum, mas faz de novo a promessa!
AFRODITE
Prometo-te, neste momento, entregar-te Helena como esposa e que ela irá acompanhar-te, irá para a tua casa em Ílion e eu própria estarei junto e prestarei a minha ajuda em tudo.
PÁRIS
E trarás Eros, Hímero e as Graças?
AFRODITE
Sossega, e hei-de trazer também Poto80 e Himeneu81.
PÁRIS
Assim sendo, por este motivo, dou-lhe a Maçã. Assim sendo, por esse motivo, dou-te a maçã – toma-a!










74 Este diálogo retrata, em discurso direto, um episódio a que muitos autores aludem ou sintetizam nas suas obras. Trata-se do relato de um concurso de beleza que, de certo modo, estaria na origem da Guerra de Tróia, que opôs, durante dez anos, Gregos e Troianos.
Quando Tétis e Peleu se casaram, convidaram para o banquete todos os deuses, á exceção de Éris, a Discórdia. Sentida pelo facto, enviou uma maçã de ouro, que deveria ser entregue á mais bela. Desde logo se apresentaram Hera, Afrodite e Atena. Ninguém mentor para decidir a contenda do que Zeus. Este, todavia, encontrava-se numa situação delicada a de escolher entre a esposa e duas das suas filhas.
Como tal, decide enviar Hermes a um jovem pastor, abandonado pelos pais, o rei de Tróia (Príamo) e Hécuba, e que se encontrava no monte Ida. As tres deusas apresentaram-se então perante ele e evidenciaram os seus melhores atributos. Nenhuns, porém, conseguiram ultrapassar os da bela Afrodite que prometeu a formosa Helena, casada com o grego Menelau, ao troiano Páris.
75 A personificação do Sarcasmo
76 A de braços alvos e de olhos grandes eram duas formas de retratar Hera (epítetos).
77 Cestus, o célebre cinto de Vénus.
78 Personificação do desejo amoroso.
79 As Graças ou Cárites eram divindades da Beleza.
80 Desejo amoroso.
81 Deus que preside os cortejos nupciais


Nenhum comentário: