quinta-feira, maio 12, 2011

Dialogo dos Mortos X : CARONTE E HERMES


 

CARONTE
Ouvi qual é a vossa situação. O barco é pequeno, como vós vedes, está comido por bicho, recebe água por muitos pontos e se oscilar para um bordo e para o outro afundará de casco para o ar. Por outro lado, vocês chegam em tão grande número, ao mesmo tempo, cada um trans­portando grande carga. Ora, se vocês embarcarem com tudo isso, receio que depois vos arrependais, sobretudo os que não sabem nadar.


UM MORTO
Como haveremos de fazer então, para ter uma navegação feliz?


CARONTE
Eu explicar-vos-ei. É preciso que embarqueis nus, deixando todo esse supérfluo na margem porque, assim como estais, dificilmente o barco poderá receber-vos.
E tu, ó Hermes, trate, a partir de agora, de que nenhum deles que não venha em pelo seja recebido, depois de jogar fora, como eu já disse, a bagagem. De pé firme, junto à escada, passe-os em revista, receba-os, forçando-os a subirem nus.


HERMES
Tens razão e assim faremos. Quem é este que está em primeiro lugar?


MENIPO
Eu sou Menipo. Mas repare, ó Hermes, a saca e o cajado já foram lançados ao pântano. E o manto surrado sequer o trouxe, de propósito.

HERMES
Entre, Menipo, o melhor dos homens, e ocupe o lugar de honra ao lado do piloto, bem alto, para observares a todos. E esta beldade, quem é?

CARMÓLE0
Carmóleo, de Mégara, o querido cujo beijo custava dois talentos.

HERMES
    Ora vamos despir a beleza e os lábios mais os beijos e a espessa cabeleira e o rosado das faces e a pele toda. Está bem assim! Ficastes desembaraçado. Suba agora! E este aí da púrpura e do diadema, esse com ar de fúria! Quem és tu?

LAMPICO
Lampico, tirano de Gela.1

HERMES
Então, Lampico, apresentas-te com tanta coisa?

LAMPICO
O quê?  Devia chegar nu, ó Hermes, um homem com funções de tirano?

HERMES
Tirano, coisa nenhuma, mas morto, sim! Portanto, jogue fora tudo isso!

LAMPICO
Veja, lá vai a riqueza!

HERMES
Jogue fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo aqui dentro, elas farão peso no barco.

LAMPICO
Então, deixe-me ao menos ficar com o diadema e o manto.

HERMES
De modo nenhum, mas jogue fora isso também!

LAMPICO
Que seja! O que mais ainda? Lancei tudo fora, como vês.

HERMES
E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança tudo isso fora também!

LAMPICO
Veja bem, estou despido.

HERMES
Entre agora. E tu, o espesso, o carnudo, quem és?

DAMÁSIAS
Damásias, o atleta.

HERMES
Sim, pareces. Eu sei, porque te vi muitas vezes nas palestras.2

DAMÁSIAS
Sim, ó Hermes. Mas receba-me, porque estou nu.

HERMES
Não estás nu, meu caro, rodeado de tantas carnes. Por isso dispa-as, senão afundarás o barco, coloques nele apenas um dos pés. Mas jogue fora também essas coroas e reclames (das tuas vitórias).

DAMÁSIAS
Olhe aqui! Estou verdadeiramente nu, como vês, e na mesma situa­ção dos outros mortos.

HERMES
Tanto melhor! Entre então. Tu também, ó Cráton, mas deixe a riqueza, a moleza por acréscimo e o gozo. Não tragas contigo os sacrifícios fúnebres nem os títulos dos antepassados. Deixe também a árvore genealógica e a glória e alguma proclamação que a cidade tenha feito a teu respeito e as inscrições das estátuas. E não digas que em tua honra levantaram um gran­de túmulo, porque tudo isso pesa, mesmo só mencionado.

CRÁTON
Não é por vontade, mas joguei fora tudo isso. Aliás, o que fazer?

HERMES
Oh, Oh, Oh! Tu aí, ó couraçado! Que queres tu? Ou, por que é que carregas esse troféu?
SOLDADO
Porque venci, ó Hermes, e me distingui e a cidade me honrou.

HERMES
Lance por terra o troféu, porque no Hades reina a paz e as armas não são necessárias. E este, grave, a julgar pela postura, arrogante, de semblante carregado, metido nas suas reflexões, quem é ele, que assim deixou crescer a barba?

MENIPO
Um filosofo, ó Hermes, ou antes um impostor, pleno de charlatanice. Assim, fá-lo despir-se também! Verás muitas coisas, e bem risíveis, que ele esconde sob o manto.

HERMES
Põe à parte a postura, em primeiro lugar, e depois tudo isso mais! Ó Zeus, quanta fanfarronice ele transporta, e quanta cretinice, astúcia, gló­ria vã, perguntas insolúveis, discursos espinhosos e conjecturas intrincadas. E ainda a grande quantidade de esforço vão, a grande taga­relice, as ninharias, a pequenez de espírito, e, por Zeus, todo esse ouro que está à vista e a vida regalada, o descaro, a preguiça, o gozo sensual e a moleza. Nada disso me passou despercebido, por melhor que o es­condas. Jogue fora também a mentira, a presunção e a crença que és melhor do que os outros, por que se embarcares com tudo isso, qual o navio de cinqüenta remadores, capaz de te receber?

FILÓSOFO
Jogo isto fora, portanto, já que assim o ordenas.

MENIPO
Mas que ele jogue fora também a barba, ó Hermes, que é pesada e espessa, como tu vês. São, pelo menos, cinco minas3 de cabelos!

HERMES
Tens razão. Tu, jogue fora também a barba!

FILÓSOFO
E quem vai ser o barbeiro?

HERMES
Menipo que aqui está, com o machado dos operários da construção naval. E, cortá-la-a, usando a escada como cepo.

MENIPO
Não, Hermes, dê-me a serra, será mais risível!

HERMES
O machado basta. Excelente! Agora tens um ar mais humano, sem o cheiro de bode.

MENIPO
Queres que eu lhe tire um pouco também das sobrancelhas?

HERMES
Perfeitamente, porque ele fê-las subir pela testa acima, não sei com que intenção, empertigando-se todo. O que é isso? E tu choras, ó porca­ria,4 e perante a morte acovardas-te? Ora, suba lá!

MENIPO
Há ainda uma coisa, e a mais pesada, que ele esconde no sovaco.

HERMES
O quê, ó Menipo?

MENIPO
A adulação, ó Hermes, que lhe foi muito útil na vida.

FILÓSOFO
Então também tu, ó Menipo, jogue fora o atrevimento e a palavra livre e a despreocupação e a sobranceria e o riso, porque, afinal, entre os restantes, só tu ris.

HERMES
De modo algum. Pelo contrário, conserve essas qualidades! É que elas são todas leves e perfeitamente portáteis e úteis para a viagem.
E tu, orador, jogue fora essa enorme verborréia interminável das tuas frases e as suas antíteses e simetrias e períodos e barbarismos e toda a restante carga de palavras.

ORADOR
Pois bem, lanço-as fora.

HERMES
Perfeito. Então, solte as amarras! Recolhamos nós as escadas! Le­vantem a âncora! Desferre a vela! Dirija o leme, ó barqueiro! Naveguemos, com felicidade!
Por que gemeis, ó palermas, e principalmente tu, ó filósofo, cuja barba foi, há pouco, devastada?

FILÓSOFO
Porque eu acreditava, ó Hermes, que a alma era imortal.

MENIPO
Ele mente. Aliás, é natural que esteja incomodado.

HERMES
Com que motivos?

MENIPO
Porque já não terá jantares caros, nem sairá de noite, às escondi­das de todos, com a cabeça encoberta pelo manto, percorrendo em sé­rie os prostíbulos, nem receberá dinheiro desde a manhã, em troca de enganar os jovens com a sua ciência! É isso que o incomoda.

FILÓSOFO
E tu, ó Menipo, não estás aborrecido de ter morrido?

MENIPO
Como? Eu que me apressei em ir ao encontro da morte,5 sem que ninguém me chamasse! Mas, a propósito, ninguém ouve um ruído como de pessoas que gritam da terra?

HERMES
Sim, Menipo, não vem só de uma região, mas uns, indo até à Assem­bléia, cheios de contentamento, riem por causa da morte de Lampico. A mulher dele aguarda os insultos com fartura, do mulherio, enquanto os filhos, apesar de pequenos, também levam pedras em quantidade, jogadas pelos garotos. E outros elogiam Diofanto, o orador, que declama um dis­curso fúnebre em Sicione sobre Cráton aqui presente. E por Zeus, até a mãe de Damásias, gemendo, inicia o coro de lamento das mulheres. Quanto a ti, ó Menipo, ninguém por ti chora, só tu jazes em repouso.

MENIPO
De forma nenhuma. Pelo contrário, ouvirás, dentro em pouco, os cães que uivam de maneira mais plangente, por minha causa. E os cor­vos que batem as asas, quanto se juntarem para me sepultar.

HERMES
És valente, ó Menipo. Mas, uma vez que chegamos, vós aí, começai a andar para o tribunal, seguindo reto por aquela rua. Eu, de minha par­te, vou buscar os outros com o barqueiro.

MENIPO
Fazei boa viagem, ó Hermes! E nós também, sigamos em frente. Porque hesitais ainda? É forçoso que sejais julgados. E dizem que as sentenças são pesadas: rodas, pedras e abutres.6 Será mostrada com ri­gor a vida de cada um.



Este diálogo faz lembrar a Barca do Inferno de Gil Vicente. Aliás, o diálogo de Luciano já estava traduzido para latim, quando Gil Vicente escreveu o seu auto.
Cidade da Sicília, fundada por colonos gregos.
Palestra, em grego, é o ginásio, onde Hermes estava presente, em estátua.
A mina era uma medida de peso e uma moeda. Como medida de peso, equivalia a cerca de 436 gramas.
xdOcreua (= c átharma).
Menipo suicidou-se por enforcamento. Ver o passo em Diógenes Laércio, VII, 100.
Alusão aos castigos de Prometeu, Sísifo e Tício.

Um comentário:

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