segunda-feira, outubro 01, 2007

Réquiem

ou o inicio da nova Jornada

Quando meu caminho me conduzir ao final (espero que se passem décadas até lá) e o inevitável corte da tesoura implacável de Átropos marcar o final da minha passagem por esta vida, irei feliz ao encontro do hospitaleiro Hades, que me franqueará os portais de seu reino.
Gosto de acreditar que o pós morte será como eu o imagino em vida. Temos na morte o que tivemos na vida e eu, que há muito não acredito no inferno ou paraíso eternos e nem tampouco nas casas de recuperação dos espiritas cristãos, terei uma boa vida após a morte, antes de renascer novamente, para continuar meu caminho e aprendizado.
Imagino que uma mão caridosa coloque um óbolo em minha boca e me diga palavras de consolo e lembrando o quanto minha vida foi fértil e feliz. Gostaria que numerassem meus feitos, minhas glórias e aventuras e que, ao invés de lagrimas e saudades, lembrassem que tive uma vida boa e que esta agora chegara fim, mas que continuarei na memória da minha amada e no sangue de meus filhos e que portanto uma boa parte de mim continuará vivendo na terra.
Gostaria de piadas, risos e alegria antes que Hermes chegasse para me conduzir a minha nova morada. Quero boas lembranças dos meus entes queridos, que continuarão por mais um tempo na vida da terra. Quero estar vestido de linho ou algodão e quero que meu corpo repouse na terra crua para que ele possa nutri-la, e sobre minha carne se plante uma arvore frutífera para que alimente aos pássaros, e aos seus pés uns ramos de heras que envolva o seu tronco.
Logo o Psicopompo me afastará das lagrimas e meu espirito seguirá o caduceu pelas passagens e os lentos rios subterrâneos até o Rio Aqueronte, onde em suas margens esperarei o barqueiro, me entretendo com as mirabolantes histórias, criadas pelas almas quais seus parentes esqueceram o óbolo. Continuamente as repetem, a todos que ali chegam acreditando que conseguirão enganar o astuto Caronte ou convencê-lo de que perderam a moeda numa aposta com Hermes.
Quando o barqueiro encostar a balsa, subirei a bordo com a minha moeda em mãos e confiante pagarei minha passagem. Depois da lenta travessia do rio de gelo, pelo qual juram os deuses, estarei diante da Planície dos Narcisos que antecede os portões do Hades, guardados por Cérbero. Este monstruoso animal com três cabeças nada faz contra os que chegam, e nos recebe bem, com lambidas afetuosas e o balançar da cauda. Porém este se torna terrível contra os visitantes indesejados e aos infelizes espíritos que apegados a vida querem voltar à terra. A Planície dos narcisos é um local triste, de eterna névoa e árvores sombrias com galhos tristes que pendem como lágrimas em direção ao solo cinzento, calcinado pelo fogo e revolvido por um vento frio e constante. Neste descampado vagam os espíritos sem feitos ou lembranças, aqueles que não deixaram famílias e que não espalharam seus genes. Gente que em nada interferiu no mundo superior, viveram como nuvens que passaram sem deixar rastros, não deixaram amores, não suscitaram amor nem ódio, não ouviram os deuses e simplesmente foram arrastados pela vida, sem nem mesmo seguirem o próprio destino. Estas almas não sofrem tormentos, nem tampouco têm alegria, apenas se arrastam segurando os que passam pelos pés e pernas perguntando continuamente quem são e que caminho devem seguir. Buscam um líder ou general que os guiem, pois nunca pensaram por si próprios. E porque nunca pensaram em si ou nos deuses vagarão até que a mínima lembrança de vida se esvaia e seus espíritos se dissolva no nevoeiro e deles só reste um triste gemido.
Para além da Planície dos Narcisos está o Érbero, com seus verdes campos limitados pelo Rio Letes, onde aqueles que levados por Perséfone, os espíritos que iriam renascer, bebiam para esquecer todas as lembranças antes de receber um novo novelo das Moiras.
No final destes campos se erguiam as moradas do Clímeno (o Ilustre) Eubuleu (o dos bons conselhos) com suas altas muralhas e grandes portões de bronze. Onde o Rei dos ínferos mundos mora com sua esposa. E é nestes imensos castelos que Hades aconselha as almas para sua próxima vida.
Pouco antes da Entrada principal, fica uma cidadela onde as almas são julgadas por Minos, Radamanto e Sarpedon depois substituído por Éaco, que deliberam se a alma cumpriu o seu destino, se deixou lembrança na terra e se tinha filhos e esposas que o amavam. Também vêem os que tinham ofendido aos deuses e que não haviam sido castigados em vida por Nemésis e aquelas almas desafortunadas que não deixaram lembranças.
Estes últimos que, não indiferentes ao destino, nada fizeram para cumpri-lo, são devolvidos à Planície dos Narcisos e seu destino já foi descrito acima, passando a eternidade naquele sombrio lugar onde o dia e a noite não se distinguem.
Os demais são encaminhados para dois outros caminhos. Aqueles que se esqueceram dos deuses e os ofenderam são encaminhados para o sombrio Tártaro, que é cercado por um lado pelo gelado Estinge e circundado por uma muralha de pedra negra e tem portões de ferro trancados por dentro, que só se abrem para dar entrada a mais um morto impiedoso. O Tártaro é um local de castigo para os que desafiaram aos deuses e seus gritos angustiantes se ouvem através das grossas muralhas triplas e nenhum mito revela que uma alma tenha fugido de lá.
O terceiro caminho, aquele que espero seguir, leva aos Campos Elísios onde o sol sempre brilha, já que os espíritos nunca precisam de repouso, as clareiras estão repletas de música e sempre se pode dançar. Os banquetes são diários e o vinho corre em cascata, mas é impossível se embebedar além dos limites e a ressaca nunca acontece. Após os banquetes diários são servidas grandes bandejas com romãs e uvas para facilitar a digestão.
Nos Campos Elísios viverei o verdadeiro "requiescat in pace" na companhia de Heróis e de antigos deuses destronados como Cronos, alto como uma montanha, que lá se comporta como qualquer ancião que vive na terra, enterrado em recordações de seus tempos de glória, e Urano castrado por este, que por vezes passa resmungando o seu infortúnio enquanto arrastas seus chinelos. Aí viverei por um bom tempo com meus antepassados notáveis, os heróis da minha infância e adolescência e na companhia de Hecáte, a Rainha Invencível do Hades, onde tem grande autoridade.
É ela que, por vezes, nos purifica quando voltamos do mundo dos vivos, onde matamos as saudades dos entes queridos ou recebemos homenagens destes. Sim, os que habitam os Campos Elísios podem voltar ao mundo dos vivos, mas a vida lá é tão feliz que poucos se ausentam e mesmo assim por breves períodos. É Hecáte quem nos mostra o caminho que não passa nem por Caronte nem por Cérbero, nos ensina a evitar a água do Letes, pois se a bebemos vagaremos junto aos tristes espíritos do Vale dos Narcisos. É também Hécate que abre a porta para que espíritos vingativos voltem para atormentar os vivos que cometeram crimes ou injustiça para com eles. Por vezes, a rainha feiticeira vem ela mesma à Terra nas noites de plenilúnio, e sua negra figura pode ser vista acompanhada por três cães nas encruzilhadas ou em lugares onde os túmulos fazem sombras. Mas é por sua mão que voltámos renascidos para o mundo dos vivos, após beber a água do Letes servida por Perséfone. Voltarei sem memórias, para viver outra meada preparada por Laquesis, e nesta espero novamente cumprir meu destino, para seguir meu caminho espiritual, até que me seja concedido viver eternamente nos Campos Elísios, junto com meus ancestrais e com todos os que amei nas minhas muitas vidas.





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