No passe tauromáquico, assim como no coito, há um movimento rumo á plenitude (aproximação do touro), seguido de um paroxismo (o touro precipitando‑se sobre a capa, roçando com seus chifres o ventre do homem de pés cravados); por fim, a separação dos dois atores, a divergência após o íntimo contato, a queda, a dilaceração. Quando, o touro respondendo bem e o homem sabendo trabalhá‑lo, um e outro se envolvem no labirinto móvel da série de passes contínuos (no curso da qual os dois adversários, não se deixando senão para imediatamente se reconfrontar, aparecem mais e mais cingidos um ao outro), criase uma vertigem que lembra de perto a vertigem erótica. Como antes da crise final do ato amoroso, ficamos todos em suspenso, na angústia de que tudo termine, no êxtase maravilhado de que tudo continue. A repetição, assim como nos gestos do coito, multiplica a cada vez a ebriedade: a cada momento, ficamos um pouco mais ébrios de sentir que o prazer pôde ainda ir além do ápice de um segundo atrás. Como na vertigem material ‑ que pode ser angustiante ou deliciosa, como nos sonhos em que voamos, temos a sensação de estar em perigo: uma tal seqüência de acidentes provocados e evitados por um triz não poderá prolongar‑se por muito tempo... ( Espelho da Taurimaquia - Michel Leiris - Cosac e Naify).
Isto se repete no Flamenco, a tensão, o momento de suspense em que a dureza dos gestos se mistura com a suavidade das mãos, como se o bandarilheiro ao invés do cruel arpão na ponta da enfeitada bandarilha levasse uma pomba em cada uma das mãos, mas o momento mantém a magia ancestral da luta do homem contra a fera, o Miura que existe em cada um de nós.
O controle e os passes são mantidos, a dureza do olhar fixo, a precisão milimétrica e o ritmo marcado pelos tacones mantêm o clima marcial e guerreiro do humano em luta contra uma força superior a sua, que representa a nossa luta contra nossa fera interior.
A contração do corpo e a força utilizada não são apenas uma dança é quase religião onde se perde o limite entre o sagrado e o profano, e assim como na Plaza de Toros, onde o homem domina a fúria da natureza se tornando deus, no flamenco a dançarina se torna deusa e o som de seus tacones é como se fosse o coração da terra acelerado e descompassado que repete o ritmo do coração da platéia que dispara ao ver a divindade que existe em toda mulher.
Mulher e deusa, sagrada e profana nos encanta e assusta com nossa incompreensão da Deusa Mãe, que nos dá vida e nos acaricia com suas mãos de leve brisa e asas de pomba, mas que pode nos esmagar com um terremoto causado por salto e ponta num sapateado frenético.
DONA
Guttemberg Guarabyra /Luis Carlos Sá
Dona desses traiçoeiros